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Ateia, ela quer “bater na porta do céu”


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Quem é Lisa Randall, a física materialista que lança hipóteses inovadoras sobre gravidade e eletromagnetismo, além de filosofar sobre ciência, religião, simetria e verdade? 

Por Flávio de Carvalho Serpa,

na Retrato do Brasil

Meio constrangida por seus belos olhos azuis que lembram a cinematográfica Jodie Foster, a nova-iorquina Lisa Randall coleciona feitos de causar espanto na maioria dos colegas de ciência. E assédios também. Ira Flatow, premiado âncora da rádio pública americana NPR, acabou nas páginas do New York Times por uma imprudência no ar. O blog de ciência Cosmic Variance acusou Flatow de estar passando uma cantada ao vivo na cientista, sem falar no conteúdo machista implícito do tipo “bonita e inteligente”.

Aos 49 anos, solteira e sem filhos, Randall é altamente competitiva, acredita no poder dos desafios e não quer nenhum desconto por ser mulher, como ela não cansa de repetir. Seu currículo dá inveja a qualquer marmanjo barbudo da área de física teórica. Além de ser a primeira mulher titular na cadeira de Física em Harvard, a universidade mais conceituada do mundo, ela coleciona as primeiras titularidades femininas em Princeton e no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). E foi a pessoa que mais se destacou em física teórica em todo o planeta durante cinco anos, período em que ocorreram mais de 10 mil citações de seu trabalho por outros cientistas.

A carreira de Randall começou na famosa e de difícil acesso Stuyvesant High School, em Nova York, onde foi colega de classe do não menos famoso cientista das teorias de cordas Brian Greene, autor de O universo elegante [Companhia das Letras, 2001] e O tecido do cosmo [Companhia das Letras, 2005]. Recentemente, ela foi de novo para a ribalta, meio a contragosto, quando o presidente de Harvard, Lawrence Summers, cometeu a gafe de declarar que são poucas as mulheres na ciência por causa de diferenças genéticas. Na polêmica que estourou, ele acabou tendo de admitir que falou demais e Randall foi indicada para trabalhar numa força-tarefa com o objetivo de monitorar a participação científica feminina e sugerir medidas reparadoras da situação.

Depois de conquistar seu lugar na difícil área da física teórica, Lisa enveredou também pelo campo da divulgação científica. Afinal, ela nunca abandonou as aulas tradicionais de física básica nas várias universidades por que passou.

Seu primeiro livro, Warped Passages (“Passagens torcidas”, sem tradução no Brasil), foi um grande sucesso internacional em 2005, mas aparentemente não vai chegar tão cedo ao leitor brasileiro, se algum dia chegar. Ela acaba de lançar sua segunda obra:“Batendo à porta do céu”, (Companhia das Letras, 2013). Enquanto Warped Passagesfoi um livro de divulgação científica essencialmente baseado no paper que lhe rendeu as mais de 10 mil citações, Knocking on heaven’s door (o título original é uma referência a uma canção de Bob Dylan) tem ambição mais ampla, enveredando até por teorizações filosóficas sobre a arte, beleza e verdade. Ou mesmo opiniões práticas sobre trivialidades, como os aparelhos da moda da Apple. “O iPod é só engraçado mas inútil”, escreve ela.

Knocking on heaven’s door, para Randall, que é declaradamente ateia, é uma metáfora da busca atávica dos humanos pelo conhecimento. Se os religiosos vão buscar revelações nas esferas celestes, Lisa tem outro caminho: a ciência e o materialismo, sem concessões místicas. “A parte religiosa do cérebro não pode agir ao mesmo tempo que a científica. Elas são simplesmente incompatíveis”, escreve ela. Os primeiros capítulos do livro são justamente de negação da revelação religiosa como fonte de conhecimento da natureza. Mas ela admite que “as pessoas querem respostas e orientações que a ciência não pode dar”, especialmente quanto ao conforto existencial.

Para entender seu mais recente livro, é preciso voltar ao primeiro: Warped Passages. Nele Lisa explica sua teoria para resolver um dos grandes mistérios da física: por que a gravidade é uma força tão fraca em comparação com as outras, como o magnetismo, a eletricidade e as forças atômicas? O problema pode parecer bizarro e menos importante que assuntos mais populares como o famoso bóson de Higgs ou o big bang, mas, se for resolvido, pode levar à solução de muitos outros problemas atualmente intratáveis da física e da cosmologia. Quem leva um tombo imagina que a força da gravidade é poderosa, mas basta um ímã para atrair um clipe metálico, vencendo a força da gravidade de todo o planeta.

Curiosamente, Lisa teve o seu encontro traumático com a gravidade numa desastrada aventura de alpinismo, que pratica sempre que tem folga. Despencou de uma montanha e acordou num helicóptero, voando às pressas para o hospital, com o calcanhar quase destruído e escoriações generalizadas. Ela foi acidentalmente atraída pela gravidade, quando escalava uma rocha no Parque Nacional de Yosemite.

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A pancada gravitacional teve sua compensação, como no caso de Newton, que teria sido inspirado pela queda gravitacional de uma maçã na sua cabeça. Durante vários meses, presa a uma cama com a perna engessada, rascunhou o Warped Passagese pôde refletir ironicamente sobre a força da gravidade, que considera ser tão fraca. Se a força da gravidade fosse um pouco mais forte, o tombo de Yosemite resultaria num bonito epitáfio: aqui jaz a jovem Lisa Randall, a física teórica mais citada durante cinco anos, aquela para quem o inglês Stephen Hawking guarda o lugar na mesa enquanto ela vai ao pódio proferir suas esotéricas palestras teóricas, sobre dimensões adicionais ocultas do nosso Universo.

Warped Passages não é uma obra de exploração dos mundos com mais dimensões, mas sim uma que usa o recurso de uma dimensão adicional oculta para explicar a debilidade da força gravitacional. Não espere encontrar especulações sobre como poderiam ser os seres grotescos ou formidáveis de uma dimensão onde a força da gravidade é tão poderosa. Mas ao longo do livro vão aparecer coisas espantosamente exóticas como as “branas”, o nome genérico da nossa popular membrana, que é uma entidade matemática de três dimensões, como o couro de um tambor. Uma membrana clássica é um caso particular de brana com apenas duas dimensões, mas teoricamente poderia ter mais dimensões. Quando essa brana tridimensional ressoa, ela obedece a equações matemáticas da mesma forma que uma corda de violino ou um batuque do tambor.

A totalidade do Universo é uma coisa chamada “bulk” (o volume) ou “espaço de imersão”, com muitas dimensões. Dentro dele podem existir várias branas-mundos, também de dimensões variadas, mas sempre com menos dimensões que o “bulk”. Segundo a tese de Lisa, vivemos numa brana privilegiada (do nosso ponto de vista, claro), com três dimensões espaciais e o espaço-tempo. Mas, por algum acidente cósmico ou por força de alguma lei desconhecida, a gravidade, que faz maçãs e alpinistas despencarem, não mora na nossa brana. As branas que ela afeta estão quase amontoadas em outra, batizada de brana-Planck, onde ela reina absoluta e com potência plena.

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Quando Randall e seu colega coautor Raman Sundrum fizeram os cálculos e equações, em 1999, descobriram que o caminho ou o tecido do espaço-tempo entre as branas contidas no “bulk”, o nosso Universo, teria de ser fortemente torcido. Quer dizer, a força da gravidade (ou os grávitons, suas partículas portadoras) tinha de vazar da brana-Planck e se retorcer até a nossa brana, a que contém todas as nossas galáxias visíveis. Por essa razão, a gravidade chega aqui tão fraca, teoriza a pesquisadora americana. Na brana onde ela se origina, é tão forte como o

Stephen Hawking

 e as forças atômicas – se essas forças existirem lá.

Pode parecer coisa de ficção científica, mas os cientistas do Cern, o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, levaram a tese de Lisa a sério, e estão preparando experimentos no LHC, o grande colisor de prótons, para testar a teoria. Quando o LHC estiver operando a todo vapor, existe a possibilidade de aparecerem nos detectores os rastros de uma partícula viajante de outra dimensão. A partícula KK (Kaluza-Klein), como seria apelidado esse viajante, no entanto, é muito furtiva. Os físicos de partículas vão ter de se contentar em ver apenas os rastros deixados pelos viajantes da outra dimensão.

O grande colisor do Cern é como uma superpista onde dois feixes de prótons, acelerados em direções opostas, colidem numa área cheia de detectores. A colisão quebra os prótons e, além dos cacos, gera energias suficientes para criar novas partículas, segundo a fórmula E = mc2. Como as energias são muito altas, aparecerão partículas muito pesadas e instáveis, que não existem livres na natureza.

Uma delas pode ser a Kaluza-Klein, segundo espera Randall. Essa entidade na verdade está prevista desde 1920, quando os físicos Theodor Kaluza e Oskar Klein resolveram adicionar mais dimensões às equações relativísticas de Einstein. Essa famosa equação de gravitação universal é matematicamente escalável. Isso quer dizer que o físico pode incluir nela tantas dimensões (além das tradicionais x, y, z) quanto quiser, sem atrapalhar a consistência matemática e ortodoxia da equação. Foi esse também o caminho que Lisa e Raman Sundrum tomaram. Partiram dessas clássicas equações einsteinianas, incluindo mais uma dimensão que não conseguimos ver ou detectar. A única concessão não ortodoxa, e bem eclética, foi usar a ideia matemática da brana, um conceito que vem da polêmica teoria de cordas. Pelos cálculos de Lisa e Sundrum, os “raios” de gravidade (ou a rota dos grávitons, que seriam as partículas portadoras da força de gravidade) não sairiam da sua brana de origem em feixes paralelos, mas, por exigências matemáticas, teriam de avançar num espaço-tempo espremido e torcido, onde perderiam força exponencialmente. A partícula KK, se detectada no LHC, viria de um universo onde a hierarquia das forças seria respeitada, sendo a gravidade tão forte quanto as outras forças básicas da natureza cósmica.

Knocking on heaven’s door é uma obra mais ambiciosa, se não em profundidade, pelo menos em abrangência. Segundo a autora, são dois livros na verdade. “Um é a origem do meu primeiro livro, combinada com uma atualização sobre onde estamos agora e sobre a expectativa que temos”, especificamente sobre os coelhos imprevistos que podem sair do chapéu mágico dos dados revelados pelo LHC nos próximos anos. Apesar de ser física teórica de formação, Lisa mergulhou nos detalhes técnicos de engenharia dessa monumental máquina – a maior já construída no planeta – para explicar como ela vai funcionar e o que poderia se esperar dela. Os problemas técnicos e eletrônicos não são apenas detalhes. Afinal, sua teoria do viajante de outra dimensão vai ser testada no LHC e ela quer saber todos os detalhes de como isso vai ser feito.

De fato, os cientistas do LHC, além da teoria geral, devem dominar a tecnologia eletrônica dos detectores que vão registrar os rastros das partículas resultantes das colisões de prótons no acelerador. Os sensores do LHC são tão sensíveis que os físicos tiveram de adicionar aos softwares de registro coisas como o nível da água no Lago Genebra, que fica perto do colisor e pode alterar as leituras embaixo da terra. No LHC, a fronteira entre físicos teóricos e experimentais está embaralhada e não há lugar para especializações estanques. Nos primórdios da física de partículas, esses sensores, além de toscos, deixavam rastros visíveis ao olho do pesquisador. Por exemplo, usavam-se filmes fotográficos onde as partículas deixavam um rastro por onde passavam e o enxame de outras partículas quando havia desintegração ou choque. Mas as partículas que o LHC busca são muito ariscas. Elas raramente interagem visualmente com o material do sensor. Bizarramente, muitas das medidas que vão ser feitas miram em partículas que simplesmente desaparecem. Mas sabendo a energia e a trajetória da partícula original, os cientistas podem calcular a diferença de energia que desapareceu. Isso quer dizer que foi formada uma partícula que não interage com as formas de matéria dos sensores e das forças conhecidas ou que simplesmente fugiu para outra dimensão.

Para quem tiver a perseverança de atravessar esse capítulo – que a própria autora sugere pular -, a obra apresenta um sintético balanço do estado atual dos conhecimentos científicos sobre a matéria. Em resumo, estamos praticamente onde estávamos na década de 1970, quando foi consolidado o chamado “modelo-padrão”, uma tabela que reúne de forma organizada todas as forças e partículas conhecidas, com a notável exceção da força da gravidade.

O LHC, essa poderosa máquina europeia, vai provocar colisões com as energias existentes no universo na idade de apenas alguns trilionésimos de segundo após o big bang. Nos destroços dessas colisões, os físicos esperam achar sinais de novas partículas que não só revelem o bóson de Higgs, a partícula que dá massa a todas as outras, mas também ampliem o modelo-padrão. E como surgiu esse milagroso bóson de Higgs, também apelidado de “partícula Deus”?

Nesses trilionésimos de segundo após o big bang, o universo se expandiu, esfriou e mudou de fase, “como a transição de fase que acontece quando a água líquida em ebulição passa à fase de vapor”. Para os adeptos do materialismo dialético, é a famosa transição de saltos quantitativos para um salto qualitativo hegeliano. Nessa nova fase do universo em expansão, aparece um campo qualitativamente novo, o campo de Higgs. As partículas que interagem com ele ganham massa, assim como o elétron ganha carga elétrica do campo eletromagnético. O fóton não interage com o campo de Higgs e, portanto, não tem massa e pode viajar na velocidade da luz, sem sofrer “atrito” com esse campo milagroso.

A parte do livro em que Lisa filosofa sobre ciência, simetria, beleza e verdade não é diletantismo poético, e sim uma prática de metodologia. Desde o surgimento da mecânica quântica, no começo do século passado, muitos cientistas teóricos foram tentados a ver a “elegância” de uma equação matemática como prova da sua verdade. Hoje em dia, a teoria de cordas é essencialmente uma formulação matemática abstrata e bonita, que não tem como ser provada na prática. A teoria de cordas e sua rival, a da gravitação quântica, são teorias chamadas de “top-botton” (de cima para baixo), nas quais os elementos primordiais são definidos e depois se deduzem as escalas mais baixas. Lisa é adepta de abordagens “botton-top” (de baixo para cima). Ela parte da nossa realidade conhecida e sobe as escalas de energia para tentar chegar até o topo, numa suposta teoria final que explique tudo e una a teoria da relatividade com a mecânica quântica.

Mas, enquanto isso, ela lida com o conceito de “teoria efetiva” que vale numa determinada “escala”. Assim ela afasta, provisoriamente, o espinhoso problema da unificação da teoria da relatividade com a mecânica quântica, coisa em que Albert Einstein se empenhou sem sucesso até o fim da vida.

Há também um capítulo que trata especificamente da ideia de simetria. Mas o conceito é mais amplo do que o da beleza simétrica de borboletas, faces humanas ou da pintura e fotografia em geral. Na física, a simetria inclui também a simetria de forças e equações. A quebra de simetria, muito ao gosto da pintura japonesa, como observa Lisa, tem consequências fundamentais para as leis físicas. Quando a natureza exclui uma opção simétrica, coisas espantosas acontecem. O fenômeno físico mais famoso, que também vai ser testado no LHC, é o aparecimento de um campo de forças assimétrico para o bóson de Higgs, que, como já foi dito, confere massa a todas as partículas, da mesma maneira que um campo elétrico confere carga elétrica a um elétron. Outro fenômeno que está sendo estudado no LHC envolve a quebra de simetria entre a quantidade de matéria e antimatéria logo após o big bang. Não fosse a natureza favorecer a matéria comum, por alguma razão ainda não totalmente esclarecida, matéria e antimatéria teriam se aniquilado ao longo do tempo e só restaria a energia pura no universo. Portanto, estamos aqui estudando o big bang no LHC porque a natureza violou uma simetria básica. Se os filósofos gregos imaginavam que beleza, simetria e verdade eram a mesma coisa, erraram redondamente. Ou melhor, esfericamente, nessa nova era de coisas multidimensionais.

A origem dos idiomas


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Livros

Language: The Cultural Tool. By Daniel

A origem dos idiomas

Novo livro argumenta que a capacidade de aprender línguas não é produto de um instinto, mas uma extensão da inteligência humana em geral

Novo livro argumenta que a capacidade de aprender línguas não é produto de um instinto, mas uma extensão da inteligência humana em geral

Por meio século, um grupo influente de linguistas ocidentais liderado por Noam Chomsky argumentou que a linguagem é uma faculdade humana inata, o produto de um “órgão da linguagem”. Os inatistas acreditam que todas as línguas compartilham características fundamentais. O inatismo lingúistico inclui-se em um debate maior sobre quanto da natureza humana está pré-programado no cérebro.

Daniel Everett, um linguista da Bentley University em Massachusetts, discorda tanto do inatismo como da semelhança fundamental entre as línguas. Ele passou anos aprendendo idiomas em vilas distantes da civilização, experiência registrada por ele num livro de memórias de 2008, “Don’t Sleep, There Are Snakes” (Não Durma, Há Cobras). Em seu novo livro “Language: The Cultural Tool” (Língua: a Ferramenta Cultural), Everett afasta-se do restrito universo da antropologia linguística em direção a uma teoria geral. Seu argumento é que a língua não é produto de um “órgão da linguagem”, mas uma extensão da inteligência em geral.

Ao invés de se desenvolver do mesmo modo em Paris e em Papua Nova Guiné, os idiomas são construídos por seus falantes de modo a se adequar às suas necessidades. Ele cita os Pirahã, o grupo de indígenas brasileiros com o qual ele passou mais tempo. Não há números além do dois em Pirahã porque, Everett argumenta, eles não têm uma moeda, não se envolvem em muitas transações de escambo, não armazenam comida para o futuro e não pensam a respeito do passado distante. Este “viver para o momento” experimentado pelos Pirahãs (a vida ocidental lhes parece terrível) modela a sua língua.

Não surpreende que diferentes línguas tenham diferentes palavras. As coisas tornam-se interessantes quando essas diferenças afetam a cognição (os Pirahãs não conhecem a matemática, por exemplo). O argumento mais controverso de Everett, contudo, e o seu maior desafio ao inatismo linguístico, refere-se à gramática.

Chomsky argumentou que a “recursão” é a característica capital de toda a linguagem humana. Isto é, a ação de embutir partes menores em partes maiores: uma oração subordinada é um tipo de recursão, porque embute uma frase em outra maior. Everett afirma que na língua Pirahã não consta a recursão, e que se a recursão é universal (os Pirahãns utilizam-na em histórias, ainda que não o façam em frases), isto não prova a existências do órgão da linguagem. A informação é naturalmente organizada através de partes menores incluídas em partes maiores. O fato de que quase todos os humanos achariam isso útil do ponto de vista linguístico não é prova de um instinto, ele diz. Verdadeiros instintos, como a ida das tartarugas recém-nascidas ao mar, não requerem aprendizado. A linguagem sim. Os animais não se destacam pela utilização de instintos básicos, enquanto alguns humanos claramente manejam a língua com mais habilidade do que outros.

É difícil enxergar o quanto a cultura influenciou a língua, em que pontos a língua afeta a cultura e a cognição, e em quais outros pontos essas diferenças não são relacionadas. Everett atirou uma pedra no lago dos inatistas, e uma de tamanho bastante modesto e razoável, dado que Chomsky uma vez o chamou de charlatão. A teoria de Everett não está totalmente provada, mas merece ser considerada com seriedade, não apenas com insultos.

Fontes:The Economist – Talk, talk

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Agora algumas boas notícias


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 Livros

Agora algumas boas notícias

Dois livros afirmam que o futuro é melhor do que esperamos

O  mundo tem estado tão atolado de más notícias recentemente que é quase impossível  acreditar em pequenos milagres, mas dois livros oportunos nos fazem lembrar que  cientistas continuam a tornar o mundo um lugar melhor, ainda que políticos se  esforcem para fazer o oposto. Peter Diamandis e Steven Kotler defendem uma  visão mais otimista em Abundance: The Future is Better Than You Think. Eric  Topol apresenta uma análise mais criteriosa sobre como a a medicina está prestes  a ser reinventada pela tecnologia digital em The  Creative Destruction of Medicine: How the Digital Revolution Will Create Better  Health Care . Ambos os livros parecem ter sido criados para  aqueles que sofrem com a angústia do apocalipse. Eles também nos lembram que a  tecnologia continua a progredir apesar da crise econômica.

Diamandis  e Koetler afirmam que o mundo está à beira de uma série de mudanças que  produzirão abundância. A revolução tecnológica foi mais longe no mundo das  máquinas inteligentes. O smartphone contém uma série de ferramentas – de  gravadores de voz a câmeras de vídeo e aparelhos de GPS – que teriam custado  dezenas de milhares de dólares há uma década. Esta revolução está acontecendo  simultaneamente em muitas áreas. Montadoras estão pesquisando carros que  dispensam motoristas. Empresas de robótica estão trabalhando em robôs amigáveis.  Fabricantes estão experimentando com impressoras 3D que podem produzir uma  infinidade de coisas, como instrumentos musicais e pedaços de artérias. Empresas  de todos os tipos estão criando uma “internet de coisas” que poderão nos avisar quando  nossas máquinas estiverem correndo perigo de quebrar, quando estivermos prestes a adoecer ou quando houver um  vazamento em alguma tubulação dentro de casa.

Os  autores argumentam que quatro grandes forças estão acelerando essas inovações. A  primeira é a ascensão de filantropos que acreditam que a tecnologia pode livrar  o mundo de males ancestrais. A segunda é a descoberta da “fortuna na base da  pirâmide” (como a denomina C.K. Prahalad, um guru da administração). As empresas  se deram conta de que as pessoas pobres, coletivamente, constituem um grande  mercado. O segredo é tornar as coisas mais baratas.

A  terceira é a proliferação de inovadores que fazem as coisas por si mesmos. Estas  pessoas ajudaram a desenvolver soluções para carros e aviões e agora estão  trabalhando em todas as fronteiras tecnológicas. A quarta é o uso inteligente de recompensas. Uma combinação de dinheiro e glória estimula pessoas inteligentes a  competirem e consegue focar uma grande quantidade de raciocínio em algum  problema específico.

Esse  tipo de otimismo, típico durante campanhas políticas, implica alguns perigos óbvios. Talvez o  poder da tecnologia possa ser usado tanto para o mal quanto para o bem. Contudo,  os autores estão certamente corretos sobre uma coisa. O conhecimento é  cumulativo, e esta é uma boa razão para supor que as coisas vão  melhorar.

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Fontes:The Economist – Now for some good

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Afinal, para que servem as universidades?


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Afinal, para que servem as universidades?

Livro de professor da Universidade de Cambridge discute papel das instituições de educação superior na sociedade

Para Stefan Collini, universidades ‘são um lar para as tentativas de expandir e aprofundar a compreensão

As universidades estão numa posição paradoxal. Como explica Stefan Collini em What Are Universities For?, um livro eloquente e imparcial, essas antigas instituições nunca foram tão numerosas ou importantes. Elas recebem mais dinheiro público do que em qualquer outro momento da história, e são celebradas como os motores do crescimento econômico e do avanço tecnológico. Ainda assim, elas frequentemente assumem posições defensivas e preocupadas, sem um senso definido de propósito ou direção.

Collini, professor de literatura inglesa e história intelectual na Universidade de Cambridge, está ansioso para trazer de volta a confiança das universidades. Segundo ele, elas “são um lar para as tentativas de expandir e aprofundar a compreensão humana de maneiras que são, ao mesmo tempo, disciplinadas e ilimitadas”. São os efeitos colaterais dessa atividade que viraram alvo dos debates públicos: o impacto na capacidade de compreensão dos alunos, ou no desenvolvimento nacional de novas tecnologias. Mas esses não são os principais propósitos das universidades.

Ficheiro:KingsCollegeChapelWest.jpg

Ao apresentar sua visão, Collini rejeita a definição de Clark Kerr, presidente da Universidade da Califórnia, que descreve as universidades como “uma série de empresários acadêmicos unidos por um rancor mútuo a respeitos das vagas de estacionamento”. Ao invés disso, ele se apoia na insistência do Cardeal Newman de que uma educação liberal não está ligada ao que alunos aprendem ou às habilidades que eles desenvolvem, mas “à perspectiva que eles têm de seu conhecimento num amplo mapa do conhecimento humano”. Mas isto está bastante distante dos mecanismos que o governo usa atualmente (e o foco de Collini é o governo britânico em Westminster) para definir metas para os gastos de dinheiro público e para transformar estudantes universitários em “consumidores” exigentes de educação secundária.

A segunda metade do livro é uma decepcionante e repetitiva coleção de ataques previamente publicados contra a política do governo britânico. Collini ataca com precisão vários conceitos, como “impacto” como base para a distribuição de fundos de pesquisa ou a insistência para que as universidades se transformem em ferramentas para impulsionar o PIB. “A sociedade não educa a próxima geração para que eles contribuam para sua economia”, insiste ele. Porém, no fim das contas as universidades têm que ser sustentadas, e esse financiamento não pode ser justificado pelas palavras de Newman. Os governos devem justificá-lo para aqueles que estão pagando a conta, e eles devem desempenhar algum papel nas decisões, sejam elas a de pagar por pesquisas sobre poesia medieval ou distrofia muscular. Além disso, quanto mais as famílias carregarem diretamente os custos da educação de seus jovens, mais eles irão querer das universidades, além de um simples local no mapa da compreensão humana.

As universidades sempre sentirão a tensão entre a pureza intelectual que Collini exige, e o complicado negócio de selecionar e preparar a classe média do futuro. A capacidade de reconciliar esses dois papéis é a marca das grandes universidades. Na verdade, a tensão criada por esses papéis conflitantes é o que ajuda a maioria dos acadêmicos a manter alguma independência de pensamento e vigor intelectual. O governo pode reclamar da produção e de estudantes que somente se preocupam com o que vão lucrar em seu tempo de vida, mas aqueles que reclamam precisam de uma boa dose do Cardeal Newman para fazer bem o seu trabalho.

Fontes:The Economist – Troubled halls

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Contra a leitura


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Contra a leitura

por JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE*

– “Não se ofenda, professor, mas eu quero saber se o senhor bebeu, hoje, antes de vir para a universidade?”. A pergunta me foi feita dentro da sala, por uma aluna, chamada Luíza, depois que eu anunciei, convicto, o tema da aula: uma reflexão CONTRA a leitura. Perplexa, Luíza confessou sua profunda decepção. Afinal, a gente havia se conhecido anos antes, numa biblioteca comunitária criada pelo pedreiro Evando dos Santos, na garagem da casa dele, Vila da Penha, no Rio, durante um concurso de poesia no qual ela fora premiada. A partir de então, militamos juntos em prol do livro, participando de vários eventos. Por isso, achou que, agora, eu devia estar de porre.

Apresento aqui um resumo da aula que dei, para que os quatro fiéis leitores dessa coluna possam avaliar também meu estado etílico, já que eles podem ficar incomodados com a crítica à leitura, pois todos os domingos a exercitam aqui nesse espaço. Dessa forma, espero também provocar os participantes do Festival Literário Internacional da Floresta – o Flifloresta – cuja abertura ocorre amanhã, em Manaus. Um dos seus objetivos é justamente o de formar novos leitores. Para ler o quê? Como?

A paixão de ler

O discurso dominante reverencia o livro, como algo sagrado que transporta luz e saber. Por isso, quem defende a não-leitura é considerado herege ou, no mínimo, bêbado. A leitura é endeusada como o único caminho que conduz ao conhecimento. Quanto mais leitura, mais humanos somos. A ausência de leitura nos brutaliza. Mentira! Puro blá-blá-blá. A História mostra que essa moralização da leitura é falsa. Por inacreditável que pareça, muitos professores, editores e pais de família que proclamam as vantagens da leitura, raramente abrem um livro. Esse discurso é tão escandalosamente hipócrita, que dá vontade de esculhambá-lo, chutando o pau da barraca.

Qual é à crítica que faço ao ato de ler? É que como prática social, a leitura deixou de ser algo livre e prazeroso, para se tornar uma obrigação, que confere status. Virou uma atividade burocrática, cobrada pelo professor na escola, que em vez de estimular a fome, empurra goela abaixo do aluno comida de qualidade duvidosa. Assim, um escritor tão vital para nós como Machado de Assis acaba sendo odiado. A escola alfabetiza, mas raramente desperta o sabor da leitura. Se para aprender a falar os bebês tivessem que ir pra escola – meu Deus do céu! – mais da metade da população seria muda ou gaga.

Vivemos num país de forte tradição oral, que não tem o hábito coletivo da leitura. Aí, de vez em quando, Secretarias de Cultura e outros órgãos não-governamentais tentam compensar as falhas da escola, desenvolvendo, às vezes com boa intenção, campanhas inúteis e dispendiosas para promover a leitura, o que equivale a criar uma repartição pública ou uma empresa destinada a promover, por exemplo, o namoro e o beijo. O namoro precisa de promoção? Não. A gente namora porque é bom. E ponto.

Ler é que nem namorar, só tem sentido se fundamentado na liberdade, na indisciplina, na anarquia, na paixão. Querer domesticar essa paixão significa sua morte. O jornal O Globo tenta incentivar a leitura, através do projeto “Quem lê jornal sabe mais”. Sabe mesmo? Sabe o quê? Essas campanhas servem para estimular o preconceito in-su-por-tá-vel e quase racista desenvolvido por aqueles que sabem ler contra os que vivem fora do mundo do livro e da leitura, tratados como burros e inferiores. Desenvolve ainda um sentimento de culpa nas pessoas por não terem lido determinados livros.

O babaca alfabetizado

Afinal, quem lê sabe mais do que quem não lê? A leitura melhora a gente? Conversa fiada! Ler não faz ninguém melhor. A leitura em si não aperfeiçoa as pessoas, sobretudo as que se acham superiores só porque leram alguns livros. Se fosse verdade, não haveria tanta gente babaca, arrogante, pretensiosa e moralmente podre. George Bush, deputados, juízes, desembargadores, empresários – como o desalgemado Daniel Dantas – fazem parte do mundo da leitura e nem por isso merecem nossa admiração.

A leitura não cura nenhuma doença e pode até agravá-la. Quem é babaca, depois de ler fica ainda mais babaca. O mesmo acontece com os ridículos, os vaidosos, os frívolos, os pedantes, os corruptos, os bestinhas e os bostinhas. Nós somos aquilo que somos, independentemente da leitura. Ler não serve pra nada, é um vício, uma perdição, uma felicidade. O único motivo pelo qual alguém pode se interessar por um livro é a dimensão mágica de seu conteúdo, a perplexidade, o assombro, a fantasia e a interrogação diante dos enigmas do cotidiano da vida que a leitura pode suscitar em nós.

Existem leitores ávidos, cujas virtudes humanísticas são nulas. São ratos de biblioteca, não lêem para viver, vivem para ler. Não namoram, não furunfam, não jogam nem dominó nem conversa fora com amigos. Perderam o sentido da vida. Levam vidinha superficial, cheia de preconceitos, indignidade e irracionalidade. São injustos, egoístas, soberbos e babacóides. Outros, só porque leram cinco, dez ou cem livros, assumem secretarias de cultura e se acham “os in-te-lec-tuais”. Humilham quem não leu os cem livros que eles juram conhecer.

Por outro lado, todos nós conhecemos não-leitores, dignos e justos, que possuem qualidades morais, inteligência e sensibilidade. Sou amigo de um pajé guarani, da aldeia de Biguaçu (SC), que não quis ser alfabetizado, mas é um sábio, conhece tudo do mundo, da natureza e da espécie humana; quando fala, ilumina quem o escuta, como um poderoso farol. Não leu nenhum dos 4 milhões de livros da Biblioteca Nacional, mas é um poço de integridade, de sapiência e de reserva moral. Aliás, nem o maior devorador de livros consegue em toda sua vida ler 0,1% dos livros já editados. É por isso que a chave da leitura está na não-leitura.

A não-leitura

O filósofo alemão Schopenhauer escreveu no século XIX que livro ruim é veneno intelectual, que estraga o espírito. Livros ruins, escritos apenas com o objetivo de gerar dinheiro, além de inúteis, são prejudiciais, porque para ler um livro bom, a condição é não ler o ruim, já que a vida é curta, e o tempo e a energia são escassos. Quem vive para ler, perde a capacidade de pensar por conta própria, como quem sempre anda a cavalo acaba esquecendo como se anda a pé. “Leram até ficar estúpidos” – diz o filósofo, para quem a leitura, sem a não-leitura, paralisa o espírito, da mesma forma que o excesso de alimento ou o alimento inadequado prejudica o corpo. O importante não é comer, mas digerir, não é ler, mas ruminar.

Não abrir livros é sabedoria. A escola, porém, nos ensina a ler, mas não nos ensina a não-ler. No entanto, o segredo da leitura reside ai: na não-leitura, que não é uma atitude passiva, mas ativa. Não é ausência de leitura, mas uma atividade organizadora e seletiva da leitura, para não se deixar afogar ou deformar pelos livros.

Há alguns anos dei um curso para professores indígenas, no coração da floresta. Era final de outubro. Quando cheguei, a maloca estava toda embandeirada para comemorar o dia do professor. Num lugar onde era difícil encontrar papel, as bandeirolas haviam sido confeccionadas com páginas de livros enviados por órgãos governamentais. Eram todos absolutamente inúteis. Pensei, então, que esse havia sido o melhor destino dado àquele veneno letal.

O historiador carioca Marcelo Lemos, meu amigo, cujo sobrenome é uma (in) citação à leitura coletiva, me enviou os dez mandamentos redigidos por Daniel Pennac, contendo os direitos do leitor: 1. O direito de não ler; 2 – O direito de pular páginas; 3 – O direito de não terminar o livro; 4 – o direito de reler; 5 – o direito de ler qualquer coisa, inclusive o que é considerado ruim; 6 – o direito ao bovarismo, doença textualmente transmissível; 7 – O direito de ler em qualquer lugar, inclusive na privada; 8 – O direito de ler uma frase aqui e outra ali; 9 – O direito de ler em voz alta ou em voz baixa; 10 – O direito de calar sobre aquilo que lemos, porque nossas razões para ler são tão estranhas quanto nossas razões para viver e ninguém pode invadir nossa intimidade.

Se você dedicou preciosos minutos à leitura dessa coluna, percebeu que não estou bêbado, mas caio numa contradição. As idéias aqui expostas não existiriam sem a leitura de quatro livros abaixo mencionados. Não menciono, porém, a longa lista dos livros que deixei de ler. Só dois deles: “Presidentes da Academia Amazonense de Letras – 1918 a 2006” (Valer – Manaus, 2006) e “Titulares da Academia. Perfis Acadêmicos” (Manaus – 1997) ambos do mesmo autor, Robério dos Santos Pereira Braga. Como os novos leitores formados pela Flifloresta vão encarar esse tipo de livro?

P.S. – Ah, antes que me esqueça, a Luiza, excelente poeta, além de leitora crítica, depois entendeu que eu, naquele dia, havia bebido apenas os autores abaixo relacionados.

i) Arthur Schpenhauer (1851): Sobre livros e leitura.Tradução de Philippe Humblé e Walter Costa. Florianópolis. Paraula. 1993; ii) Pierre Bayard: Comment parler des livres que l´on n´a pas lus? Paris. Minuit. 2007; iii) Juan Domingo Arguelles: Que leen los que no leen? México. Paidos. 2003; iv) Michèle Petit: Lecturas: del espacio íntimo al espacio público. Mexico. Fondo de Cultura. 2001.


* JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE é Doutor doutorado em Historia na École Des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, França; Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio). Lattes:  http://lattes.cnpq.br/7211811266353518 Texto originalmente publicado

A PERSONALIDADE NEURÓTICA DO NOSSO TEMPO


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A PERSONALIDADE NEURÓTICA DO NOSSO TEMPO

Resenha

Karen Horney busca apresentar uma descrição precisa da pessoa neurótica, os conflitos que impulsionam essas
pessoas, suas ansiedades, seu sofrimento e as inúmeras dificuldades que as
pessoas têm consigo mesmas e com as demais pessoas em relacionamentos interpessoal.
Ela concentrou seu tema na estrutura de caráter que aparece constantemente em
quase todas as pessoas neuróticas de nosso tempo, de um modo ou de outro. Ela
considera que os conflitos existentes e as tentativas do neurótico na busca de
resolver esses conflitos são de extrema importância. Enfatiza que as
dificuldades neuróticas reais são geradas não apenas por experiências
individuais incidentais, mas também pelas condições culturais específicas em
que as pessoas vivem e que as condições culturais influenciam as experiências
individuais e determinam sua forma particular. Toda a sua fundamentação repousa
sobre bases freudianas, com algumas divergências pessoais as quais Horney pontua claramente.

Horney descreve neurose como “um distúrbio psíquico suscitado por medos e defesas contra estes medos, e por
tentativas para encontrar soluções conciliatórias para tendências em conflito”
e que convém receber esse nome quando afastar dos padrões comuns à cultura considerada.

Como ela busca considerar as formas pelas quais a neurose afeta a personalidade limitou a investigação em duas direções:
num tipo de neurose cuja personalidade do indivíduo permanece intacta, sendo a
neurose uma situação externa cheia de conflitos¹ (ela não está interessada
nesse tipo); um outro tipo de neurose que é a neurose de caráter, condições em
que o principal distúrbio encontra-se nas deformações do caráter, resultante de
um efeito insidioso processo crônico que pode ter início na infância ou de um
conflito de situação real de história da vida da pessoa que pode mostrar que
esses traços difíceis já estavam presentes há algum tempo. Seu direcionamento
volta-se, também, para os próprios distúrbios de caráter, pois as deformações
da personalidade são uma constante das neuroses, o caráter que influi na conduta humana.

Horney constata que os conteúdos dos conflitos centrais e suas inter- relações eram semelhantes em todas as
personalidades neuróticas. O fato de que a maioria dos indivíduos de uma
cultura procura enfrentar os mesmos problemas, conclui-se que tais problemas
foram criados pelas próprias condições existentes naquela cultura. Isso não
quer dizer que não haja pessoas neuróticas com peculiaridades essenciais
comuns, mas que essas similaridades são básicas e produzidas pelas dificuldades
existentes localizadas num determinado tempo e numa cultura.

Horney enfatiza que a pressuposição atinente à relação entre cultura e neurose precisa ser pesquisada de forma
cautelosa e através de observação de atitudes visíveis ao observador superficial,
as atitudes podem ser: atitudes relativas a dar e obter afeição (excessiva
dependência da provação dos outros ou da afeição); atitudes relativas à
avaliação do próprio eu (sentimentos de inferioridade e inadequação); atitudes
relativas à auto- afirmação (inibições explícitas); agressividade (ações
dirigidas a outrem, ataques, desdém); sexualidade (necessidade compulsiva de
atividade sexual ou inibições de exercer essa atividade). Horney explicita que
se faz necessário entender esses processos dinâmicos que dão origem as atitudes
mencionadas, e abaixo discorrer-se-á sobre alguns assuntos importantes. Segundo ela:

A ansiedade é o centro motriz das neuroses e às vezes é confundida com o medo. Ambas são reações proporcionais ao
perigo, porém, no caso do medo, o perigo é manifesto e objetivo, e no caso da
ansiedade é proporcional ao significado que a situação tem para a pessoa sendo
as razões por que a pessoa fica ansiosa desconhecidas. Fazer tal distinção
faz-se necessário, visto que a tentativa de arrancar do neurótico a sua
ansiedade é inútil, pois a maneira que a ansiedade se prende à situação se dará
pela maneira que a pessoa lida com tal situação. Alguns elementos que aparecem
nos efeitos da ansiedade podem ser insuportáveis para a pessoa. Um dos elementos,
por exemplo, é a sensação de inutilidade, outro, é a aparente irracionalidade
que abrange fatores culturais, individuais podendo ser encarada como algo inferior.

A ansiedade é um desafio para o indivíduo encará-la, pois sua presença implícita indica que há algo
desarranjado e é um incentivo a procurar algo dentro de nós mesmos. Em nossa
cultura, há quatro maneiras de escapar à ansiedade: racionalizando-a
(transformar a ansiedade em um medo racional); negando-a (negar a existência da
ansiedade); narcotizando-a (pode ser feito por meio de bebidas alcoólicas ou de
entorpecentes); evitando pensamentos, sentimentos, impulsos e situações que possam despertá-la.

A ansiedade pode estar oculta sob impressões de desconforto físico ou disfarçada de diferentes modos que pareçam
irracionais ou injustificados, no entanto verifica-se que ela é sempre o
elemento fomentador das inibições que trata da incapacidade para fazer, sentir
ou pensar certas coisas, e sua função é evitar a ansiedade que surgiria caso a
pessoa tentasse sentir ou pensar tais coisas.

Freud apud Horney coloca que o fator subjetivo implícito na ansiedade está em nossos próprios impulsos instintivos,
ou seja, tanto o perigo antecipado pela ansiedade como a sensação de impotência
ante ele são evocados pela força explosiva de nossos próprios impulsos. A
princípio, qualquer impulso pode produzir ansiedade. A ansiedade está ligada,
ao menos aparentemente, aos desejos sexuais, pessoas neuróticas, muitas vezes,
se mostram angustiadas face às relações sexuais ou apresentam inibições nesse
fator como resultado da ansiedade. Porém, uma análise mais detalhada revela que
a base da ansiedade não está nos impulsos sexuais como tais, mas sim, em
impulsos hostis associados e estes, tais como a de subjugar ou humilhar o parceiro
no ato sexual. Na grande maioria das pessoas não é nada evidente a conexão
causal entre a hostilidade e a ansiedade neurótica; a repressão da hostilidade
pode apresentar diversas conseqüências psicológicas. Reprimir uma hostilidade
pode significar fazer -de -conta que tudo está bem para abster-se de lutar por
aquilo que a pessoa deseja. Caso a hostilidade seja reprimida quando os
interesses da pessoa estiverem sendo atados, esta poderá facilitar a outrem
tirar proveito dela. Caso a hostilidade seja reprimida, a pessoa pode não ter a
idéia de que é hostil. Pelo processo de repressão à hostilidade (ou seja,
repressão da raiva) é afastada a percepção consciente e esta pode ficar
ruminando como uma paixão. A expansão da repressão à hostilidade pode ser restringida
de três formas: a consideração das circunstâncias de cada situação mostra-lhe o
que não pode fazer com um inimigo (ou suposto inimigo); se a ira se dirige
contra alguém que se admira essa ira irá se integrar na totalidade de seus
sentimentos; e, por fim, tendo em vista que o homem desenvolve um certo senso
do que é ou não apropriado fazer, isso limitará os impulsos hostis. O indivíduo
registra a existência do sentimento reprimido em si mesmo pelo fato de não
haver uma alternativa rigorosa entre consciente e inconsciente, mas de haver,
conforme Sullivan apud Horney, vários níveis de consciência. O impulso
reprimido não só é eficaz, mas, também, em nível mais profundo da consciência o
indivíduo tem noção de sua presença.

A repressão da hostilidade pode ser suficiente por si mesmas para a criação da ansiedade desde que a hostilidade e
sua ameaça potencial para os interesses de outros sejam suficientemente
grandes. Esses processos suscitados pela hostilidade reprimida têm como
resultado o sentimento de ansiedade que, na verdade, a repressão produz
exatamente o estado que caracteriza a ansiedade: uma sensação de impotência
ante o que se sente como um perigo que nos ameaça do exterior. Porém, o fato de
a repressão da hostilidade conduzir à produção de ansiedade, não implica que
deva haver ansiedade manifesta sempre que isto ocorrer, pode ocorrer de a
ansiedade ser afastada por um dos artifícios defensivos.

O conceito de ansiedade proposto por Horney foi desenvolvido por métodos psicanalíticos. Porém difere do pensamento
de Freud em vários aspectos.

Horney assinala que Freud coloca que a ansiedade resulta de uma repressão de impulsos (impulso sexual com uma
interpretação fisiológica), e que depois, ele conceituou ansiedade neurótica
como originada do medo dos impulsos cuja descoberta ou busca de satisfação
acarretará um perigo externo (refere-se à agressividade). Freud coloca, ainda,
que na infância estamos predispostos a reagir ansiosamente, Horney diz a esse
respeito que de fato em neuroses de caráter, sempre se constata que a formação
da ansiedade começa na primeira infância ou que pelo menos se deram as
fundações da ansiedade básica resultando, a partir daí, seu desenvolvimento
rumo a uma evolução para uma neurose, porém, não se pode ser categórico a ponto
de se dizer que a ansiedade como um todo é uma reação puramente infantil.

Uma situação conflitiva real pode servir para explicar uma ansiedade, caso encontremos uma situação criadora de
ansiedade numa neurose de caráter, faz-se necessário levar em conta ansiedades
preexistentes com o objetivo de explicar por que naquele caso particular a
hostilidade apareceu e foi reprimida. Para entender como começou o
desenvolvimento da ansiedade, também, faz-se necessário remontar à infância,
porém, Horney coloca que está mais interessada na estrutura atual da
personalidade neurótica. Ela verificou que o denominador comum a todas as
histórias da infância é um ambiente em que aparecem variáveis e combinadas de
diferentes formas. O mal funcionamento se dá sempre pela falta de um autêntico
calor humano e afeição, o que pode consistir da incapacidade dos pais da
criança oferecer a esta carinho e afeição. Atos ou atitudes por parte dos pais
podem despertar a hostilidade na criança em ações como preferência por outros
filhos, repreensões injustas, mudanças imprevistas de indulgência excessiva
para rejeição desdenhosa, promessas não cumpridas, entre outros comportamentos.
O fator que desperta hostilidade na criança seria, principalmente, a frustração
de seus desejos, especialmente os da esfera sexual, e ao ciúme. É possível que
esta surja em parte por causa da atitude proibitiva da cultura em relação ao
prazer em geral e à sexualidade infantil em particular, quer esta se refira à
curiosidade sexual, masturbação ou brincadeiras libidinosas com outras
crianças, porém a frustração não é a única fonte de hostilidade rebelde. O
ciúme pode ser uma origem de ódio nas crianças e no adulto e, o ciúme do
neurótico pode se apresentar como fator proveniente da falta de carinho e do
espírito de competição.

Existem várias razões pelas quais uma criança criada num ambiente que apresenta membros da família neuróticos reprima
a hostilidade: incapacidade, medo, amor ou sentimentos de culpa. Após os dois
anos de idade a criança apresenta um grande crescimento da sua dependência
biológica em relação aos pais passando para uma dependência que abrange a vida
mental, intelectual e espiritual. Há muitas diferenças individuais no grau em
que as crianças continuam dependendo dos pais em função do que os pais buscam
na educação dos filhos, se a tendência é tornar o filho forte, corajoso,
independente, ou se a tendência é abrigar o filho, fazê-lo obediente. O lema
para essa tendência pode ter vários significados e ter várias combinações
levando a criança a recalcar sua hostilidade gerando a ansiedade: “tenho de
reprimir minha hostilidade porque preciso de você”; “tenho de reprimir minha
hostilidade porque tenho medo de você”; “tenho de reprimir minha hostilidade
por ter medo de perder o seu amor”; “tenho de reprimir minha hostilidade porque
eu seria uma criança má se me sentisse hostil”. A ansiedade infantil é um fator
necessário, mas não causa suficiente e única para o desenvolvimento de uma
neurose. Parece que condições favoráveis logo no início da vida ou influências
neutralizantes de qualquer espécie, podem deter um desenvolvimento neurótico
explícito, caso isso não ocorra pode se desenvolver os processos que constituem uma neurose.

A reação de hostilidade e ansiedade restringe-se ao meio que levou a criança a adotá-la ou se evolui para uma
atitude generalizada de hostilidade e ansiedade para com as pessoas. Quanto
mais difíceis forem as experiências da criança no seio da família mais propensa
a desenvolver reações de ódio para com os pais e com outras crianças como uma
atitude de desconfiança ou desdém em relação aos outros. Quanto mais a criança
disfarçar seu rancor contra a família, mais ele projetará sua ansiedade sobre o
mundo exterior e assim convencer-se-á que o mundo, em geral, é perigoso e assustador.

As reações individuais agudas a provocações individuais cristalizam uma atitude de caráter que por si só não
constitui uma neurose, mas é campo fértil em que uma neurose bem definida
poderá brotar a qualquer instante. A ansiedade básica está inextrincavelmente entrelaçada
com uma hostilidade básica. A ansiedade básica é o suporte de todas as relações
com outras pessoas e continua a existir quando não existe um estímulo
particular na situação concreta. Em simples neuroses de situação não há a
ansiedade conflitiva concreta da parte de indivíduos cujas relações
interpessoais não estão conturbadas. As neuroses são encontradas entre pessoas
sadias que se mostram incapazes de enfrentar a existência do conflito e de
tomarem uma decisão sobre ele. A diferença entre neurose de situação e de
caráter é que a primeira apresenta mais facilidades terapêuticas, enquanto que
a segunda se apresenta mais difícil de se resolver, podendo o tratamendo ser mais demorado.

A ansiedade básica apresenta-se mais ou menos a mesma, variando em extensão e intensidade. Ela pode ser como uma
sensação de ser pequeno, insignificante, indefeso, abandonado, ameaçado num
mundo disposto a abusar, ludibriar, atacar, humilhar, atraiçoar, invejar. Nas
neuroses raramente há a percepção da existência da ansiedade básica, ou da
hostilidade básica, ou pelo menos do peso e valor que ela tem para a vida
global do indivíduo. A ansiedade básica tem repercussões precisas na atitude da
pessoa para consigo mesma e para com os outros. Quanto mais intolerável a ansiedade,
mais exaustiva tem de ser as medidas de proteção. Em nossa cultura, há quatro
formas que a pessoa procura proteger-se contra a ansiedade básica: afeição (“se
você me ama não me magoará”), submissão (“se eu ceder não serei magoado”),
poder (“se eu tiver poder, ninguém poderá magoar-me”) e retraimento (“se eu me
retrair, nada poderá magoar-me”). Para avaliar o papel desempenhado nas
neuroses por essas tentativas de proteger-se contra a ansiedade básica é
importante perceber sua intensidade potencial. Elas são impulsionadas por uma necessidade de reafirmação.

Os impulsos que exercem a função principal nas neuroses são o desejo de afeição e o poder de controle. A afeição
é tão freqüente nas neuroses e facilmente identificável que pode ser indicada
como um dos indicadores mais seguros da existência de ansiedade e sua
intensidade aproximada. O neurótico se vê ante o dilema de ser incapaz de amar
e apresenta uma grande necessidade do amor dos outros. Qual seria o significado
do que é o amor em nossa cultura? Ele seria a capacidade de dar e receber
afeição, porém é muito difícil dizer o que é o amor, o mais fácil seria dizer o
que não é amor, mas sabe-se que é não impor, como o neurótico muito faz e que
implica uma exigência hostil. É certo que queremos algo da pessoa que gostamos,
queremos satisfação, lealdade, auxílio, até mesmo, sacrifício, quando
necessário, isto é indício de saúde mental ser capaz de exprimir tais desejos
ou mesmo de lutar por sua consecução. O neurótico luta desesperadamente para
conseguir qualquer espécie de afeto só com o intuito de reafirmar-se. Muitas
dessas relações são sustentadas sob o disfarce de amor sob uma convicção
subjetiva de ligação, quando na realidade o amor é apenas apego da pessoa à
outra para lhe satisfazer as suas necessidades próprias. A pessoa neurótica
cujo artifício defensivo é uma busca intensa por afeição, dificilmente percebe
sua incapacidade de amar. A maioria dessas pessoas confunde a própria
necessidade que tem dos outros com uma inclinação para o amor e o motivo para
defender essa ilusão é que, renunciar a ela significa a pessoa colocar à mostra
o dilema de sentir-se hostil às pessoas e, não obstante, desejar sua afeição.
Outra dificuldade que o neurótico encontra ao procurar satisfazer sua fome por
afeição é que este é incapaz de aceitá-la. O indivíduo se defronta com a
descrença ou sente excitados sua desconfiança e medo e não acredita no afeto
porque está convencido de que ninguém pode amá-lo. A afeição oferecida a uma
pessoa nessas condições pode despertar franca ansiedade na mesma. As provas de
afeto podem manifestar o medo da dependência emocional que é um perigo real
para quem quer que não possa viver sem afeto de outrem, e qualquer coisa que
vagamente sugira isso pode provocar uma oposição desesperadora, já que tal
resposta rapidamente invoca o perigo da dependência. Para uma pessoa impedida
por sua ansiedade básica e que, conseqüentemente, procure afeto para
proteger-se, as probabilidades de obter esse tão desejado afeto são precárias e
a própria situação que cria a necessidade interfere com sua satisfação.

As necessidades de afeição neurótica e infantil têm em comum um único elemento, a sua importância, porém ambas tem uma
base diferente. A necessidade neurótica desenvolve-se de acordo com condições
diversas e que são: ansiedade, não se achar digno de ser amado, incapacidade
para acreditar em qualquer afeição, e hostilidade contra todos. Uma
característica na necessidade neurótica de afeição é a sua natureza compulsiva,
pois para o neurótico, a conquista de afeição constitui uma necessidade vital.
A necessidade neurótica de afeição pode focalizar-se numa única pessoa –
marido, esposa, médico, amigo – ou a certos grupos de pessoas, talvez aqueles
que revelam interesses em comum ( grupo político ou religioso, ou limitar-se a
um dos sexos). No que toca a esta questão do papel da afeição, podem
distinguir-se três tipos de pessoas neuróticas. No primeiro grupo não há a
menor dúvida de que as pessoas anelam por afeição, sob qualquer forma que esta
se apresente, por quaisquer meios que possam consegui-la. As do segundo grupo
esforçam-se por alcançar afeição, mas, se não a obtém, em alguma relação
interpessoal – e como regra tendem a fracassar. O terceiro grupo é de pessoas
que foram tão severamente maltratadas, no começo da vida, que sua atitude
consciente passou a ser de profunda descrença em qualquer afeição.Todas as
características da necessidade neurótica de afeição têm em comum o fato de as
próprias tendências conflitivas do neurótico barrarem o caminho a essa afeição.
Qualquer omissão em satisfazer as exigências do neurótico, ao seu modo , é
considerado uma repulsa. A conexão entre sentir-se repelido e ficar irritado
permanece inconsciente. A hostilidade provocada pela sensação de ser repelido
contribui bastante para manter a ansiedade alerta ou mesmo para fortalecê-la. É
um fator importante no estabelecimento de um círculo vicioso, de que é difícil
sair. Como o neurótico espera, com suas ameaças, obter aquiescência às suas
exigências, não as porá em prática enquanto tiver esperança de conseguir seus
fins por outra forma. Se perder essa esperança, poderá concretizá-las sob a
tensão do desespero e do desejo de vingança.

A necessidade neurótica de afeição pode
às vezes, assumir a forma de paixão sexual ou de desejo sexual incontestável. O
ciúme é considerado oriundo de rivalidade ente irmãos ou do complexo de Édipo;
o amor irrestrito, do erotismo oral; a cobiça é explicada como erotismo anal
etc., porém foi percebido que todas as atitudes e reações são da mesma natureza,
partes constitutivas de uma estrutura total. Até certo ponto, a expressão
sexual da necessidade de afeto depende das circunstâncias externas favorecem-na
ou não. Depende da diferença da cultura, da vitalidade e do temperamento
sexual. E, finalmente, depende de que a vida sexual da pessoa seja
satisfatória, pois, se não o for, é mais provável que ela reaja de uma forma
sexual. Porém tais fatores não bastam para explicar diferenças individuais
básicas podendo ocorrer diversas variações entre um indivíduo e outro. A
sexualidade torna-se a principal via de acesso a outras pessoas e, por isso,
assume uma grande importância. Em nossa cultura, temos a tendência a encarar
com orgulho e contentamento a nossa atitude liberal em face a sexualidade.
Sabe-se que hoje houve uma mudança para melhor, em relação ao passado, pois
dispomos de maior liberdade nas relações sexuais e de uma maior capacidade para encontrar nelas satisfações.

Segundo Horney há muitas provas de que nas neuroses de adultos todas as características de amor e ciúme que Freud
descreveu como inerentes ao complexo edipiano, podem ter existido na infância,
mas que, para ela, é muito menos freqüente. Ela acredita que o complexo
edipiano, ao invés de processo primário das espécies, é produto de diversos processos
de diferentes espécies. Nas situações familiares que proporcionam um solo
fértil para o desenvolvimento de um complexo edipiano, geralmente muito medo e
hostilidade são despertados na criança e sua repressão provoca o aparecimento
de ansiedade. Na verdade, de acordo com Freud apud Horney, um complexo de Édipo
plenamente desenvolvido mostra todas as tendências como exigências excessivas
de amor incondicional, ciúme, dominação, ódio devido à rejeição – típicas da
necessidade neurótica de afeição. Para ela, o complexo de Édipo, em tais casos,
não é, pois, a origem da neurose, mas sim, ele próprio, uma formação neurótica.

A procura de afeição é uma maneira freqüentemente usada para conseguir-se tranqüilidade interior em face da
ansiedade; outra é a luta pela conquista de poder prestígio e posses. A obtenção de afeto significa conseguir reafirmar-se por meio de contato intenso
com outras pessoas, ao passo que a busca de poder, do prestígio e de posses
implica em conseguir reafirmação afrouxando o contato com os outros e
fortalecendo sua própria posição normal. O desejo de dominar, de alcançar
prestígio, de adquirir riqueza, e o desejo de obter afeto não são traços
neuróticos. A sede de poder do neurótico brota da ansiedade, do ódio e de
sentimentos de inferioridade, ou seja, a aspiração normal ao poder nasce da
força e a aspiração neurótica, da fraqueza. Os esforços neuróticos em busca de
poder, prestígio e posses servem não só como defesa contra a ansiedade, mas
também como um canal de descarga para a hostilidade reprimida. A busca de poder
serve como defesa contra a impressão de desmerecimento (um dos elementos
básicos da ansiedade). As metas e funções da busca neurótica de poder,
prestígio e posses são:

Metas Reafirmação contra Hostilidade sob a forma de lei
PoderPrestígioPosses InsegurançaHumilhaçãoIndigência Tendência para oprimirTendência para humilharTendência para espoliar outros

Os meios de obter poder, prestígio e
posses variam de cultura para cultura. A competição neurótica difere da normalem três aspectos.

Primeiramente, o neurótico, constantemente, compara-se com os
outros, mesmo em situações onde isso não seja o caso. A segunda diferença é que
a ambição do neurótico não é só realizar mais do que outros ou ter maior êxito
que eles, mas, igualmente, ser ímpar e excepcional. A terceira diferença é a
hostilidade implícita nas ambições neuróticas, cuja atitude é a de que ninguém
senão eu devo ser bonito, capaz, vitorioso. A hostilidade é inerente a toda
competição intensa, posto que a vitória de um dos competidores pressupõe a
derrota do outro. Há muita ansiedade associada aos impulsos frustradores em
virtude de o neurótico supor que os outros, após um malogro, se sentirão tão
magoados e vingativos quanto ele. Por conseguinte, fica ansioso quanto a magoar
os outros e abstém-se de tomar conhecimento de suas tendências frustradoras
acreditando e insistindo que elas são de fato justificáveis. Todos esses
impulsos destrutivos, implícitos na ânsia neurótica de poder, prestígio e
posses entram na luta competitiva. O neurótico se torna importante por si
mesmo, independente de quaisquer desvantagens ou sofrimentos que possam
acarretar. A habilidade para humilhar, explorar ou burlar outros se converte
num triunfo de sua superioridade ou, se falhar, numa derrota. Muito da raiva
manifestada pelo neurótico quando incapaz de tirar proveito dos outros se deve
a esse sentimento de derrota. Há duas formas principais de encobrir os impulsos
frustradores ou depreciativos: disfarçando-os sob uma atitude de admiração ou
intelectualizando-os por meio de ceticismo. O amor pode ser empregado para
compensar os impulsos frustradores que nascem da ambição. A admiração ou o amor
pode servir como compensação para impulsos frustradores da seguinte forma:
impedindo que os impulsos destrutivos aflorem à consciência; eliminando,
totalmente, o espírito de competição graças à criação de uma distância
intransponível entre si próprio e o competidor; proporcionando um certo meio de
desfrutar o sucesso ou dele participar; apaziguando o competidor e
precavendo-se, assim, contra sua vingança.

Devido a seu caráter destrutivo, o
espírito de competição nas pessoas neuróticas dá lugar a uma ilimitada
ansiedade e, conseqüentemente, leva-as fugir à competição. Resta saber de onde
provém essa ansiedade. Uma das causas é o medo de retaliação contra a sede
implacável de ambição. O medo à retaliação por si só não leva a inibições, pode
ter como resultado um ajuste de contas a sangue-frio com a inveja, a rivalidade
ou a malícia, imaginária ou real, dos outros, ou então uma tentativa para
ampliar o poder do indivíduo considerado, de modo a defender-se contra qualquer
malogro. A pessoa neurótica irá seguir dois caminhos incompatíveis: um anelo
agressivo por uma dominação do tipo ninguém senão eu e, simultaneamente, um
desejo exagerado de ser amado por todos. A principal razão pela qual o
neurótico teme suas próprias ambições e exigências é o temor de perder o afeto
dos outros. É na necessidade de justificativa que, mais do que qualquer outra
coisa possibilita um elemento de sutil insinceridade furtiva que impregna a
personalidade, ainda que a pessoa possa ser, fundamentalmente, honesta. Essa atitude
hipócrita é bastante confundida com uma atitude narcisista. O produto direto da
ansiedade, latente na competição neurótica, é o temor ao fracasso e ao sucesso.
O temor ao fracasso é uma expressão do medo de ser humilhado: qualquer falha
converte-se em catástrofe. Via de regra o neurótico não tem conhecimento de sua
ansiedade, percebendo apenas suas conseqüências. De modo geral, o neurótico
considerará mais garantido não fazer as coisas que fazer. Sua máxima é: “fique
no cantinho, seja majestoso, e, sobretudo, não chame atenção”. Em muitos
neuróticos, a ansiedade referente à hostilidade dos outros é tão grande que
temem o sucesso, mesmo estando certos de consegui-lo. O neurótico é meticuloso,
registra com uma penosa exatidão, todos os mil e um pequenos incidentes da vida
real que não combinam com sua ilusão consciente. O neurótico pode ir a dois
extremos, ao mesmo tempo em que se sente mais do que convicto de seu valor
excepcional pode estranhar-se de que alguém o leve a sério. Facilmente sente-se
magoado, desprezado, negligenciado, esquecido, e reage com ressentimento
vingativo proporcional. Pode dirigir-se contra pessoas que querem ajudá-lo, e
ao no mesmo instante pode ser completamente incapaz de sentir e formular
acusações contra as pessoas que, realmente, lhe fizeram mal.

Os sentimentos de culpa parecem exercer
papel saliente no quadro aparente das neuroses. Em algumas pessoas neuróticas,
esses sentimentos manifestam-se aberta e abundantemente; em outras aparecem
disfarçados, porém sua presença é indicada pela conduta, atitudes e maneiras de
pensar e reagir. A pessoa neurótica pode mostrar-se inclinada a considerar-se
responsável por seus sofrimentos, julgando que não merece ter melhor sorte.
Pode, também se sentir, inegavelmente, mais à vontade, e até mesmo perder
alguns de seus sintomas neuróticos, se ocorre uma adversidade (perder seus bens
ou ser vítima de um acidente). Os sentimentos de culpa e de inferioridade, não
são de modo algum indesejáveis; a pessoa neurótica mostra-se bem longe de
querer livrar-se deles. De fato, insiste em sua culpa e resiste a toda
tentativa para isentá-la das mesmas. O neurótico procura dissimular a ansiedade
sob sentimentos de culpa, teme as conseqüências prováveis e antecipa
conseqüências completamente desproporcionais à realidade e a natureza destas
que dependerá das circunstâncias. O medo de reprovação é muito comum nas
neuroses. Quase todo neurótico receia excessivamente ou mostra-se supersensível
ao ser reprovado, criticado, acusado, desmascarado. Este medo é interpretado
como um indício de sentimentos de culpa latentes, ou seja, ele é considerado
uma resultante de tais sentimentos. O fator principal pelo qual o neurótico se
preocupa em ser descoberto e rejeitado é devido a discrepância entre a fachada
que ele apresenta tanto ao mundo quanto a si mesmo e as tendências recalcadas
que jazem escondidas por detrás de tal fachada, a insinceridade da parte
neurótica de sua personalidade é responsável pelo medo de reprovação, é essa
insinceridade que o neurótico teme ser descoberta. O neurótico procura várias
maneiras para proteger-se da reprovação como a procura de refúgio na
ignorância, na doença ou na incapacidade. Se a incapacidade não é eficaz ou
aplicável numa dada situação, a doença pode servir à mesma finalidade. A enfermidade
pode servir como fuga a dificuldades ou, ainda, como uma venda contra a
percepção de que o medo está fazendo-o recuar ante uma situação que deveria ser
enfrentada. Outra defesa é a impressão de estar sendo vítima, sentindo-se
maltratado, o neurótico guarda-se contra as censuras por suas próprias
tendências para abusar dos outros; sentindo-se negligenciado, impede as
censuras por suas tendências para dominar. As atitudes auto-recriminatórias
evitam que o neurótico perceba a necessidade de modificar-se e, de fato,
constituem um substitutivo para a modificação. Para o neurótico, isso é muito
mais árduo porque as atitudes lhe são impostas pela ansiedade, e este fica
assustado com a possibilidade de ter de modificar-se, se esquiva a admitir a
necessidade de fazê-lo. O neurótico, também pode enganar-se quanto à
necessidade de modificação intelectualizando seus problemas. Essa atitude
intelectualizada é usada como uma defesa que os impede de experimentar o que
quer que seja emocionalmente e, portanto, de perceberem que tem de
modificar-se. As auto-recriminações também podem servir para afastar o perigo
de acusar os outros, pois pode parecer mais seguro carregar a culpa nos
próprios ombros. Freud apud Horney reconhece que os sentimentos de culpa
originam-se do medo, pois pressupõe que o medo contribui para a criação do
superego, em que vê o responsável por tais sentimentos; porém ele crê que as
exigências da consciência e os sentimentos de culpa uma vez estabelecidos,
funcionam como uma força irrevogável. Uma vez aceito que os sentimentos de
culpa não são por si mesmos a força motivadora primária, torna-se importante
ter em mente certas teorias analíticas que foram construídas partindo da
hipótese de que os sentimentos de culpa (particularmente os de caráter difuso),
a que Freud deu o nome provisório de sentimentos de culpa inconscientes – e que
são da máxima importância na geração das neuroses (a da reação terapêutica
negativa; a do superego como uma estrutura interior; masoquismo moral, que
explica o sofrimento imposto a si próprio como resultante de uma necessidade de
ser punido).

A pessoa neurótica arrasta uma soma
enorme de sofrimento e recorre a este sofrimento como meio de atingir certas
metas que, devido aos dilemas presentes, são difíceis de alcançar de outra
maneira.

O termo masoquismo originariamente
referia-se a perversões e fantasias sexuais, em que satisfação sexual é obtida
por intermédio de sofrimento (a pessoa apanha, é torturada, violentada,
escravizada, humilhada). Freud reconheceu que essas perversões e fantasias
sexuais são afins de tendências generalizadas para sofrer, isto é, aquelas sem
qualquer base sexual aparente (masoquismo moral) considerando que nas
perversões e fantasias sexuais o sofrimento visa a uma satisfação concreta. A
diferença entre as perversões sexuais é o chamado masoquismo moral que está
relacionado ao grau de consciência. A obtenção de satisfação por meio do
sofrimento é um grande problema mesmo nas perversões, mas torna-se mais
intrincado nas tendências generalizadas. Uma das explicações para o masoquismo
é a de Freud sobre a hipótese do instinto de morte que visa a autodestruição,
quando associada a impulsos libidinosos. A impressão superficial é que o
neurótico sofre mais do que é autorizado pela realidade. Ele dá a impressão de
que algo em seu íntimo apega-se a toda oportunidade de sofrer, que pode dar um
jeito para transformar circunstâncias fortuitas em algo doloroso e que ele
reluta em abrir mão do sofrimento. O sofrimento pode ter o valor de uma defesa
direta para o neurótico, e pode ser o único modo pelo qual ele se protege
contra perigos iminentes. Nesse sofrimento não há vantagens aparentes a serem
obtidas, nem uma platéia que possa ser impressiona, nem compaixão a ser
conquistada, nem um triunfo ao impor sua vontade a outros. O princípio que
opera nesse processo é dialético, encerrando a verdade fisiológica de que em
certo ponto a quantidade se converte em qualidade. Embora o sofrimento seja
penoso, o abandono do eu a um sofrimento excessivo servir de anestésico contra
a dor. Nas fantasias masoquistas o denominador comum é um sentimento de se ser
desprovido de vontade e de poder e de estar sujeito ao domínio de outrem, cada
forma de manifestação tem suas implicações e peculiaridades. Freud apud Horney
coloca que os impulsos masoquistas são um fenômeno essencialmente sexual, tendo
apresentado teorias para explicá-los. Ele olhou o masoquismo como um aspecto de
uma fase, bem definida e determinada biologicamente, do desenvolvimento sexual,
a chamada fase anal-sádica. Mais tarde completou a hipótese de os impulsos
masoquistas terem uma afinidade à natureza e implicarem algo parecido como uma
manifestação da vontade de ser mulher e sua última posição é que as tendências
masoquistas são uma combinação de impulsos sexuais e de autodestruição,
cabendo-lhe o papel de evitar que os impulsos de autodestruição causem no
indivíduo. A posição de Horney é que os impulsos masoquistas não são um
fenômeno essencialmente sexual, nem resultante de processos determinados
biologicamente, mas originam-se de conflitos personalísticos. Sua meta não é o
sofrimento. O sofrimento neurótico não é o que a pessoa quer, porém, o que ela
paga é a satisfação que busca não é o sofrimento em si mesmo, mas uma renúncia
do eu.

A cultura moderna baseia-se, economicamente,
no princípio da competição individual. Cada indivíduo tem de lutar com outros
indivíduos do mesmo grupo, tem de ultrapassá-los e, freqüentemente, tem de
repeli-los. A vantagem de alguém é comumente a desvantagem de outrem. O
resultado psíquico desta situação é uma tensão difusa de hostilidade entre os
indivíduos: todos são competidores reais ou potenciais uns dos outros. A
competição, assim como a hostilidade potencial que acompanha, está embrenhada
em todas as relações humanas. O espírito de competição é um dos fatores
predominantes nas relações sociais. Ela perturba as relações entre homens e
mulheres, não só na escolha do parceiro, mas em toda luta com ele em busca da
superioridade. A rivalidade entre pai e filho, mãe e filho, mãe e filha, um
filho e outro, não é um fenômeno humano generalizado, mas sim a resposta a
estímulos culturalmente condicionados. A tensão potencial de hostilidade entre
indivíduos gera um medo constante. O medo de fracassar é realista, pois, em
geral, as potencialidades de falhar são muito maiores do que as de obter
sucesso, e porque, numa sociedade competitiva, os fracassos acarretam uma
frustração real das necessidades e significam a perda de prestígio e toda sorte
de frustrações emocionais.

As diferentes situações (espírito de
competição, as hostilidades entre semelhantes, medos, amor-próprio diminuído)
provocam, no indivíduo normal de nosso tempo, uma necessidade intensificada de
afeto. Pelo fato de corresponder uma necessidade vital, o amor é
supervalorizado em nossa cultura. Ele se transforma num fantasma que ilude como
se fosse a solução para todos os problemas; torna-se um disfarce para a
satisfação de desejos que nada tem a ver com ele, mas é convertido em uma
ilusão, o indivíduo normal fica ante o dilema de necessidade de uma grande soma
de afeto, ao mesmo tempo se vê em dificuldades para consegui-lo. A situação
representa terreno fértil para o desenvolvimento das neuroses. Os mesmos
fatores culturais que afetam a pessoa normal, levando-a a uma auto-estima instável,
tensão hostil potencial, apreensão, espírito de competição acarretando medo e
hostilidade, afetam o neurótico em maior grau e, nele, os mesmos resultados são
meramente intensificados. Em toda neurose há tendências contraditórias que o
neurótico não consegue conciliar. As mais notáveis são: competição e o sucesso
de um lado, e entre o amor fraternal e a humildade de outro; o incentivo de
nossas necessidades e as frustrações ao tentar satisfazê-las; a alegada
liberdade do indivíduo e suas limitações reais. Essas contradições, estranhadas
em nossa cultura, são justamente os conflitos em que o neurótico se debate para
reconciliar: suas tendências para agredir e para condescender; suas exigências
excessivas e seu temor de nunca conseguir nada; seu anelo por se engrandecer e
seu sentimento de incapacidade pessoal. Já a pessoa normal é capaz de fazer
face às dificuldades sem danificar sua personalidade, no neurótico todos os
conflitos são intensificados a tal grau que se torna impossível qualquer
solução que seja satisfatória. Parece que a pessoa que tem a probabilidade de
tornar-se neurótica é a que experimentou as dificuldades decorrentes da cultura
de uma forma acentuada, sobretudo através de experiências durante a infância e
que, conseqüentemente, foi incapaz de solucioná-las, ou que, então, só as
solucionou a custa de muito sacrifício para sua personalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HORNEY, Karen. A personalidade
neurótica do nosso tempo. 11ª ed. Bertrand Brasil.

1 Seria uma neurose de situação. Uma momentânea
desadaptação a uma situação difícil.

‘A revolta de Atlas’


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Livro

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‘A revolta de Atlas’: objetivismo x praxeologia

Ayn Rand consubstanciou a ‘pedra filosofal’ da sua teoria objetivista na Magnum-opus Atlas Shrugged.

Por Alfredo Marcolin Peringer

Ayn Rand consubstanciou a ‘pedra filosofal’ da sua teoria objetivista na Magnum-opus Atlas Shrugged, traduzida recentemente pelo Instituto Millenium com o título de “A revolta de Atlas”. Atlas, gigante da mitologia grega, representa no enredo as indústrias e demais atividades privadas, obrigadas a suportar nos ombros um pesado fardo estatal, via altos impostos e regras igualitárias e restritivas.

Com a maestria de uma grande dramaturga, Rand envolve a obra com mistérios e tramas que cativam completamente o leitor, dando-lhe a impressão de que não está lendo uma obra filosófica, mas apenas um atrativo romance. Ademais, simplifica a teoria objetivista ao dividi-la em três grandes axiomas: existência, identidade e consciência. A vida é o axioma maior, principal objetivo moral do homem e que dá suporte aos demais valores morais para mantê-la. Rand, aristotélica confessa, explica, pela ‘lei de identidade’, que a realidade existe, é objetiva, e não pode ser falseada. Pela “lei de causalidade”, relaciona as identidades (boi e sapato, minério de ferro e automóvel), deixando implícito o concurso da mente humana, via ações produtivas, na transformação de uma identidade na outra. Nessa metamorfose é identificada a impossibilidade de haver consumo de maneira consistente sem que tenha havido antes produção. A consciência, com a interação de três valores objetivos adicionais — razão, determinação e amor próprio — responde pelas ações e escolhas do homem, necessárias à sua sobrevivência.
No processo, os custos diretos e indiretos impostos pelo governo são considerados imorais e levam, com o tempo, à destruição social. Essa é a interpretação social objetivista.

A praxeologia, por outro lado, ciência da ação humana, desenvolvida por Ludwig Von Mises, sustenta que o indivíduo age buscando substituir uma situação menos satisfatória por outra mais satisfatória. Nessa ação ele ignora as propriedades físicas ou químicas dos bens: a satisfação é obtida pelos valores subjetivos deles. Não contesta os valores normativos da Ética à conduta humana, até porque as ações praxeológicas estão conectadas, de maneira indissociável, aos valores morais, assim como aos limites impostos pela natureza. Porém, discorda que os valores objetivos possam explicar, cientificamente, as ações humanas. Ainda que aceite o alto valor moral da água à vida, a satisfação do Homem não está na totalidade desse bem, nem na sua constituição química ou física, mas numa pequena porção dela, em valores subjetivos. Aliás, sem essa subjetividade, não há possibilidade de haver comércio, nem preço, nem mercado, quanto mais ciência econômica.

Uma divergência mais forte entre as teorias refere-se à formação do conhecimento. No objetivismo, a matéria-prima do conhecimento é a realidade objetiva, captada pela percepção sensorial. Na Praxeologia, o conhecimento vem a priori dessa realidade, não estando sujeito às comprovações empíricas, nem às regras de falseabilidade popperianas. Sabe-se, a priori, por exemplo, que todo imposto é um mal econômico e social e que essa verdade não consegue ser falseada, principalmente por dados estatísticos, como sói acontecer. Aliás, nesse aspecto, os praxeologistas seguem a máxima de Benjamin Disraeli: “há três tipos de erros: mentiras, mentiras detestáveis e estatísticas”.

Usando a realidade brasileira como padrão, caso “A Revolta de Atlas” fosse escrita por um praxeologista misesiano, os agentes privados, no papel de Atlas, não se revoltariam, nem fariam greve ou abandonariam suas empresas, deixando o governo à míngua, como Rand procede no romance. Não há prejuízo praxeológico aparente a esses agentes, que os levem a agir assim. Eles têm a liberdade de transferir os impostos aos preços finais dos bens ou de reduzir a produção, a renda e os empregos, adequando-os à menor demanda. Em ambos os casos, a maldade tributária fica difusa, enfraquecendo a resposta praxeológica. Mas a apatia da ação humana é mais forte no caso dos impostos indiretos. Embutidos nos preços, eles ficam ocultos, passando despercebidos aos consumidores. O resultado é um meio privado frágil e inerte e um meio burocrático forte e ativo, com alto poder de expropriação. Incentivado pelos gastos, as ações praxeológicas desse grupo crescem incontrolavelmente. E é completamente irrelevante, ao caso, se nas ações governamentais “as questões de verdadeiro e falso não entram em jogo; os princípios não têm qualquer influência; a lógica é impotente e a moralidade é supérflua”, narrado por Rand (p. 142, v. III).  Afinal o homem é o mesmo, esteja no serviço público ou privado. As suas ações também não são regidas por princípios éticos globais, mas pela realidade subjetiva cotidiana.

Infelizmente, o estudo praxeológico nos conduz às mesmas previsões catastróficas do objetivismo, considerando o caso de “Atlas não se revoltar”: destruição econômica e social, ruptura da ordem democrática e assunção do oportunismo estatista totalitário. É questão de tempo…

Alfredo Marcolin Peringer é colunista do site Instituto Millenium, parceiro do Opinião e Notícia.

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Biografia de Adam Smith revela influência de Quesnay


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LIVROS

Estátua de Adam Smith (Fonte: AP)

Biografia de Adam Smith revela influência de Quesnay

Autor de “A Riqueza das Nações” teve importantes
rivais, como o Barão de Montesquieu

Adam Smith inspirou livros ferozes nos últimos
anos: livros que tentam resgatá-lo dos economistas, ou talvez resgatar a
economia dele. “Adam Smith: An Enlightened Life”, de Nicholas Phillipson,
ignora tanto os discípulos quanto os críticos de Smith, e o devolve aos
historiadores, preocupando-se muito mais com as influências que o pioneiro da
economia política recebeu, e muito menos com as que ele exerceu.

Trata-se de uma história intelectual, mas cheia de
vida. Uma história sobre um herói que surge da obscuridade para triunfar sobre
importantes oponentes, quase sempre assimilando suas técnicas. O primeiro
mentor de Smith foi Henry Home, um filósofo e advogado que patrocinou as
palestras em Edimburgo que deram início à carreira de Smith em 1748, quando ele
tinha apenas 25 anos. Seu grande parceiro de treinamento foi o também escocês
David Hume, que ensinou a Smith alguns de seus melhores argumentos. Muitos de
seus rivais eram franceses como o filósofo Etienne Bonnot de Condillac e o
Barão de Montesquieu.

O primeiro livro de Adam Smith, “Teoria dos
Sentimentos Morais”, reverteu o argumento usado por Jean-Jacques Rousseau, que
acreditava que a sociedade condenava o homem à vaidade e à ambição. Smith, por
sua vez, argumentava que a sociedade ensinava o homem a ser bom. Essa ideia
surgiu a partir da capacidade humana para a “simpatia”: a habilidade de sentir
o que o outro sente. A educação moral de um homem estaria completa quando ele
se colocasse na posição de “espectador imparcial, capaz de julgar sua conduta
com a mesma indiferença usada para julgar a conduta de outros”.

Sua grande obra, “A Riqueza das Nações”, foi um
violento ataque às políticas comerciais britânicas, que desviavam a energia da
nação, enfraqueciam suas colônias, e a afundavam em rivalidades com seus
vizinhos, sempre apoiadas na crença de que a riqueza de uma nação estava nos
estoques de ouro e prata. O desafio intelectual de Smith vinha novamente da
França. Seu livro deveria superar as obras de François Quesnay, principal nome
da fisiocracia, e o homem a quem Smith teria dedicado “A Riqueza das Nações”,
caso estivesse vivo.

Quesnay foi o primeiro autor a encarar a economia
como um sistema de partes interativas, a ser analisado pelas necessidades e
conveniências que produz, não pelos lingotes que acumula. Mas seu erro foi
pensar que a riqueza das nações se concentrava apenas na agricultura. Na sua
visão, marcadores, artesãos e fabricantes não acrescentavam nada ao trabalho e
capital que desviavam dos campos. Para Smith, que vivia na Glasgow transformada
pelo comércio e a indústria, essa visão não era plausível. A riqueza das nações
não estava na terra, mas sim no trabalho distribuído da maneira mais vantajosa
e dividido de acordo com a demanda.

Phillipson recheia seu livro de detalhes, mas, ao
trazer as ideias de Smith para o papel, ele pinta o retrato de um filósofo,
que, apesar de ser um defensor ferrenho do livre comércio, passou seus últimos
dias como um comissário aduaneiro administrando 800 leis parlamentares que
congestionavam o comércio.

Leia mais:

Ascensão e queda de um historiador britânico

Livro analisa vida e obra de Gustav Mahler

Livro revela bastidores de principal agência de
inteligência britânica

Fontes: Economist – The Scottish Enlightenment: Making Adam Smith

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ECONOMIA

Ao longo dos anos 1980, os financistas brasileiros se adaptaram à dança especulativa

O novo papel dos financistas

Confira o artigo de Paulo Guedes sobre a mudança na atuação
dos financistas no mercado brasileiro

Ao longo dos anos 1980,
os financistas brasileiros se especializaram em dança especulativa de poucos
passos e ritmo frenético.

O primeiro movimento,
com juros artificialmente baixos em cada tentativa malsucedida de
estabilização, era tomar dinheiro emprestado a juros prefixados e pular de
galho em galho escolhendo ativos baratos ou repassar recursos a juros
pós-fixados, até que a inflação disparasse novamente. O governo seria forçado
então a aumentar a taxa de juros.

O segundo movimento, em
antecipação, era realizar os ganhos de capital das posições especulativas com a
venda de ações, ouro e imóveis, transferindo-se os fundos para depósitos de
overnight.

Ocorria então uma
rápida acumulação de capital a taxas astronômicas exigidas para o financiamento
do déficit fiscal, pois a explosão dos gastos públicos, os riscos de uma
inflação alta, de alavancagem excessiva e de descasamento de prazos criavam uma
avalanche de endividamento em bola de neve.

O primeiro movimento
era especulativo, estimulado pelo baixo custo do dinheiro.

O segundo era uma busca
pela preservação de capital. E, como os mágicos que desaparecem do palco em
meio à fumaça por efeitos especiais nunca revelados, escondiam-se também os
financistas em grutas remotas durante incêndios na floresta.

A partir de meados dos
anos 1990, os financistas se adaptam a novo ambiente.

Os lucros com as
apostas em ativos brasileiros, permitidos pela melhoria dos fundamentos
macroeconômicos, substituíram os ganhos especulativos advindos da instabilidade
desses mesmos fundamentos. A convergência gradual dos preços dos ativos
brasileiros aos níveis internacionais produziu lucros superiores aos ganhos
extraídos da volatilidade desses preços. E, como as taxas de juros brasileiras,
por sua vez, convergem muito lentamente, houve também ganhos colossais de
arbitragem, captando-se recursos externos baratos para repasse no mercado de
crédito interno a taxas elevadas.

Apesar do movimento em
câmera lenta, dos ganhos especulativos com a volatilidade dos anos 80 aos
ganhos de arbitragem dos anos 90, os capitais financeiros mergulham cada vez
mais fundo na economia real. A ampliação do crédito ao consumidor e do crédito
imobiliário às classes de baixa renda, de um lado, e o baixo custo de capital
para empresas listadas em bolsa, de outro, revelam uma nova engrenagem de
financiamento do crescimento econômico brasileiro.

Artigo publicado
originalmente pelo site Instituto Millenium, parceiro do Opinião e
Notícia.

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Novo Moderno Prometeu: O Espelho de Victor Frankenstein


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Novo Moderno Prometeu: 

O Espelho de Victor Frankenstein

by Revista Espaço Acadêmico

 

por ALEXANDER MARTINS VIANNA*

“O amanhã jamais igualará o ontem;

Nada, exceto o mutável, pode perdurar!”

(Mary Shelley, 1818)

Em 1818, Mary
Shelley (1797-1851) publicou um conto fantástico em que um cientista, Victor
Frankenstein, é tomado pela ânsia de alcançar a glória através da ciência. Em
sua busca científica, desenvolve interesse pela física, pela química e,
combinando ambas as formações, 

procura descobrir a origem do princípio vital
latente em todas as coisas vivas. Descobrir, nesse sentido, significava poder
dominar tal princípio e dar-lhe uma finalidade. Para ele, tal finalidade era
“banir a doença do coração humano, tornando o homem invulnerável a todas as
mortes, salvo a provocada pela violência…”; assim, ele “seria o criador de uma
nova espécie, seres felizes, puros…” que lhe deveriam a própria existência
(SHELLEY, 2001: 41-56). Deste modo, nasceu a tragédia neoprometéica de Victo
Frankenstein. Como consideramos que a obra se desenvolve num plano de tragédia,
poderemos identificar alguns pontos de “desmedidas” ou “desequilíbrios” que,
com as próprias mortes física e social de Frankenstein, adquirem um sentido
moral de reequilíbrio.

Laicizando
o tema da (re)criação do (super)homem, Mary Shelley cria um plano dramático de
condenação para Frankenstein por pretender romper a barreira entre a vida e a
morte. A visão da natureza como exemplo perfeito de força vital pressupõe a
existência do ciclo entre a vida e a morte, pois a vida brota da decomposição
da matéria morta em uma projeção perpétua para o futuro. Nesse sentido, tal
espiral não pode ser rompida e, caso ocorra, estaríamos diante de um novo
paradigma, algo estranho a tudo existente em matéria de saber, normas, valores
e convenções. Tal é a condição existencial de um
 monstro. O monstro, ou pária social, é o sinal de que
algo dentro de uma sociedade vai mal. No entanto, longe de contemplarem a si
mesmas na imagem do monstro, as sociedades tendem geralmente a criar fronteiras
(reais/simbólicas) para projetar no alienígena social os seus males.

No
entanto, Mary Shelley não concederá tal mecanismo de escape a Frankenstein:
afinal, a sua “escultura viva” não seria uma abstração distante perdida numa
estatística, mas um ser individual especial (
Übermensch) que, desenvolvendo razão e sensibilidade, era
capaz de se fazer presente à mente de seu criador como indivíduo e, portanto,
tornou-se impossível para Victor alienar-se dos efeitos imprevistos de sua obra
– desconforto do qual é poupada a maioria dos cientistas (do passado e do
presente), sob o manto protetor da “neutralidade científica”, especialização e
finalidades nobres. Assim, depois de ter aprendido a sua amarga lição, podemos
ouvir a seguinte advertência de Frankenstein a Walton:

“(…)Aprenda,
se não pelos meus preceitos, pelo menos por meu exemplo, o perigo que
representa a
 assimilação
indiscriminada da ciência
, e quanto é mais feliz o
homem para quem o mundo não vai além do ambiente cotidiano, do que aquele que
aspira
 tornar-se maior do
que sua natureza lhe permite
.(…) Eu seria o primeiro a
romper os laços entre a vida e a morte,
 fazendo jorrar uma nova luz nas trevas do mundo…”(Idem,
p.56)
 [Grifo meu]

Para
enfrentar problemas relacionados à fome, doenças infecto-contagiosas, à
pauperização do espaço urbano e à formação de um número crescente de pessoas
inclassificáveis (nesse sentido, “massa”), as elites governantes européias do
século XIX criaram as suas próprias versões prometéicas de reforma e
aperfeiçoamento dos espaços rurais e urbanos. Nessa trajetória, o novidade do
século XIX foi firmar cada vez mais o discurso médico-científico como voz de
autoridade na forma de se conceber “remédios” e “profilaxias” para a questão
social. Assim, a questão social – muitas vezes tratada como uma “questão
sanitária” – recebeu um tratamento elitista insensível a um justo equilíbrio
entre meios e fins. Ora, pretender criar uma nova espécie de homem – nascida de
um plano cientificamente traçado por um especialista – que fosse resistente à
morte por doenças e privações materiais poderia até romper a barreira entre a
vida e a morte, como pretendera Frankenstein, mas manteria sem abalos as
fronteiras sociais. Entretanto, tal como as massas pauperizadas da modernidade,
o monstro tem consciência, sensibilidade e migra para o “mal e a vingança”
quando é privado de afeto por ter uma aparência pouco atrativa.

Portanto,
a tragédia de Frankenstein contada por Mary Shelley não deixa de manifestar
certos incômodos com a forma que as elites governantes tratavam a questão
social na época. A arrogância social, a afetação nas afeições e a falta de
solidariedade constróem seus próprios monstros sociais, que são jogados “para o
nada social” ou “para o mal”. Nesse sentido, não é uma condenação moralista
religiosa contra o saber médico-científico que Mary Shelley nos apresenta, mas
uma provocação romântico-humanista que pretende lembrar que o homem, em sua
ânsia de tentar aperfeiçoar a si mesmo e a seu mundo, não pode perder a
sensibilidade, o que significa equilibrar de modo inclusivo as relações entre
meios e fins. Tal é a lição que Frankenstein quer deixar para Walton em seus
último momentos:

“(…)
Num acesso de desmedido entusiasmo, criei uma criatura racional e cabia-me,
dentro do limite dos meus poderes, assegurar-lhe a felicidade e o bem-estar.(…)
Recusei-me a criar[-lhe] uma companheira(…). Ele demonstrou perversidade e
egoísmo sem par. Destruiu meus amigos. Devotou-se ao extermínio de seres que
possuíam sensibilidade, felicidade e saber. E não sei até onde a sua sanha
vingativa poderá levá-lo. Por isso, devia morrer. Cabia a mim a tarefa de
pôr-lhe fim à existência, mas fracassei(…). Perturba-me…o fato de que a
sobrevivência do monstro signifique a continuidade do mal.(…)Adeus, Walton!
Busque a felicidade num viver tranqüilo e
 evite ser dominado pela ambição,mesmo que seja essa – aparentemente construtiva
– de distinguir-se no campo da ciência e dos descobrimentos
.
Mas por que falo isso? Na verdade, se eu me arruinei nessas esperanças, pode
ser que outro seja bem sucedido(…)”(Idem, p.202)
 [Grifo meu]

Assim,
as últimas palavras de Frankenstein que concluem seu ciclo trágico estão longe
de anularem as esperanças de descobertas no campo da ciência, mas servem para
corrigir em Walton (que está na mesma posição do leitor) um tipo de ânsia de
saber que – por desequilibrar a relação entre meios e fins – perde a
sensibilidade em relação à beleza da vida, em qualquer de suas expressões. No
começo da tragédia, em uma carta à sua irmã, Walton conta as dificuldades de
sua viagem científica no Ártico e refere-se à perda de um marinheiro nos
seguintes termos:

“(…)A
vida ou a morte de um homem seriam um preço ínfimo a pagar pelo conhecimento
que eu buscava e pela vitória sobre as forças da natureza hostis à espécie
humana que esse conhecimento legaria à posteridade(…).(Idem, p.32)

Para
criar um contraponto sentimental a isso, Mary Shelley expõe logo em seguida a interlocução
de Frankenstein com Walton e, assim, coloca o leitor num plano de suspense e
segurança em relação àquilo que deve ser entendido como a “moral da história”:

“(…)
Somos criaturas brutas, apenas semi-acabadas quando nos falta alguém mais
sábio, melhor do que nós mesmos, para ajudar-nos no
 aperfeiçoamento da própria natureza
– débil e falha
.(…)Você tem esperança, o mundo à sua
frente, e não tem motivo para desespero. Quanto a mim, perdi tudo, e não tenho
como recomeçar a vida(…). Não creio que o simples relato de meus infortúnios
lhe possa ser de alguma utilidade,
 mas
quando reflito que está seguindo o mesmo rumo, expondo-se aos mesmos perigos
que me tornaram o que sou
, imagino que possa tirar algum proveito
moral da minha história
; e isso poderá constituir
uma ajuda para orientá-lo em caso de êxito, ou para consolá-lo se fracassar.
Prepare-se para ouvir o relato de acontecimentos que normalmente poderiam ser
considerados fantásticos. Se estivéssemos em outro ambiente, como o que em
outras épocas cercava o nosso dia-a-dia, eu temeria a sua descrença. Porém,
muitas coisas parecem possíveis nestas regiões misteriosas; coisas que poderiam
provocar o riso daqueles poucos afeitos às
forças mutáveis e inelutáveis da natureza.
Por outro lado, minha história guarda, em sua própria essência, provas
insofismáveis da sua verdade(…).”(Idem, pp.32-34)
 [Grifo meu]

No
primeiro terço do século XIX, a sensibilidade romântica não tolera um mundo que
se torna monocromático e afetado por regras que impedem o livre desenvolvimento
do conhecimento e da sensibilidade. Nesse sentido, ela se inscreve em larga
medida na superação do ideal clássico como paradigma, buscando mais diversidade
de cores e objetos, pois possibilitam ao homem aprender novas coisas e
aperfeiçoar as antigas. Os escritos orientalistas deram aos românticos um
repertório de imagens-conceito para onde projetar seus sonhos de reforma da
civilização européia. No desenvolvimento da história de Mary Shelley, Clerval
aparece como aquele que ajuda seu combalido amigo Frankenstein a recuperar o
seu “verdadeiro eu”, perdido depois de uma longa e voluntária privação de luz,
cores e sensibilidade em meio às trevas de dois anos de seu projeto prometéico:

“…Clerval
jamais partilhara de meu gosto pela ciência natural. Suas inclinações,
dirigidas para a literatura, divergiam totalmente das minhas. Ele viera para a
universidade com a finalidade de aprofundar-se em línguas orientais…Voltando os
olhos para o Oriente, buscava descortinar os horizontes propícios a uma
carreira brilhante. Atraíam-no os idiomas persa, árabe e sânscrito, e eu
resolvi acompanhá-lo nesses estudos com a esperança de dissipar minhas íntimas
preocupações(…), de modo que o roteiro dos orientalistas me pareceu um
agradável convite, e eu fiquei contente em tornar-me discípulo do meu amigo.
Não tencionava, como ele, adquirir conhecimento
crítico dos seus escritos
, nem usufruir qualquer proveio prático.
Procurava apenas distração, sem pretender ir além de compreender-lhes o
significado. Meu esforço de aprendizagem foi compensado, pois
 descobri nos orientais um toque ameno
de melancolia, uma poesia de aceitação tão singela quanto profunda, como também
um grau de sabedoria e uma exaltação de alegria que jamais experimentei no
convívio com autores ocidentais
. Através de suas páginas, a
vida parece um jardim florido dourado de sol. Que diferença da poesia épica e
heróica de Grécia e Roma!” (Idem, pp.69-70). “(…)Em Clerval eu via refletido o
meu antigo eu. Ele era um eterno curioso e ansiava por adquirir experiência e
aumentar seus conhecimentos.
 A
diferença de costumes que observava era para ele uma fonte inesgotável de
instrução e diletantismo
(…).Aspirava visitar a
Índia, na crença de que, apoiado nos conhecimentos das várias línguas daquele
país…e nos conceitos que formara sobre sua formação histórica, poderia colher
observações aplicáveis ao desenvolvimento da sociedade européia(…)”(Idem,
pp.151-152)
 [Grifo meu]

Clerval
surge, então, como uma recuperação de luz, um novo experimentar da diversidade
sensível de outrora. No entanto, em vez do marmóreo referencial clássico,
Frankenstein teve nele a oportunidade singular de experimentar o brilho das
luzes e sensibilidades orientais. A existência de Clerval – que associa as
luzes do conhecimento e o diálogo sensível com a diversidade das coisas do
mundo – surge na história como um axioma oposto ao paradoxo
prometéico-existencial de Frankenstein. Este desequilibrou a relação entre
meios e fins em sua ânsia egoísta de glória científica e superação de séculos
de trevas. Como seu projeto foi executado às custas da privação de sol,
paisagem natural e afetos familiares, Frankenstein desequilibrou
psicologicamente a si mesmo e, por extensão, a sua obra. Assim, quanto mais
anti-romanticamente tentava superar as trevas, mas caía nelas. Por isso mesmo,
o paradoxo prometéico de Frankenstein é rico de implicações para a análise da
sensibilidade romântica em matéria de conhecimento: ele tinha em mente uma escultura
viva, uma criatura superior ao seu criador em beleza, sensibilidade,
inteligência, força e resistência; mas como tal criação poderia ser a imagem da
beleza se seu criador, para torná-la possível, privou-se de vida e afeição,
acercando-se somente da morte? A afeição e a sensibilidade são apresentado por
Mary Shelley como medidores para definir quando a busca do saber adquire
feições monstruosas. Lição cara para a posteridade…


Referências Bibliográficas:

BARZUN, Jacques. Classic, Romantic and Modern.
Chicago/London: Chicago University Press, 1975.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no
Ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

FOUCAULT, Michel. “O Nascimento da Medicina
Social”. In
 Microfísica do
Poder
. Rio de Janeiro: Graal, 1995. pp.79-98

FURET, François. O Homem Romântico. Lisboa:
Presença, 1999.

RÉMOND, René. O Século XIX, 1815-1914. São
Paulo: Cultrix, 1993.

SAID, Edward W.. Cultura e Imperialismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.

SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Martin
Claret, 2001.


* Doutor em História Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil(2008); Professor Adjunto da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Publicado na REA, nº
26, julho de 2003, disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/026/26cvianna.htm