Novo Moderno Prometeu:
O Espelho de Victor Frankenstein
by Revista Espaço Acadêmico
por ALEXANDER MARTINS VIANNA*
“O amanhã jamais igualará o ontem;
Nada, exceto o mutável, pode perdurar!”
(Mary Shelley, 1818)
Em 1818, Mary
Shelley (1797-1851) publicou um conto fantástico em que um cientista, Victor
Frankenstein, é tomado pela ânsia de alcançar a glória através da ciência. Em
sua busca científica, desenvolve interesse pela física, pela química e,
combinando ambas as formações,
procura descobrir a origem do princípio vital
latente em todas as coisas vivas. Descobrir, nesse sentido, significava poder
dominar tal princípio e dar-lhe uma finalidade. Para ele, tal finalidade era
“banir a doença do coração humano, tornando o homem invulnerável a todas as
mortes, salvo a provocada pela violência…”; assim, ele “seria o criador de uma
nova espécie, seres felizes, puros…” que lhe deveriam a própria existência
(SHELLEY, 2001: 41-56). Deste modo, nasceu a tragédia neoprometéica de Victo
Frankenstein. Como consideramos que a obra se desenvolve num plano de tragédia,
poderemos identificar alguns pontos de “desmedidas” ou “desequilíbrios” que,
com as próprias mortes física e social de Frankenstein, adquirem um sentido
moral de reequilíbrio.
Laicizando
o tema da (re)criação do (super)homem, Mary Shelley cria um plano dramático de
condenação para Frankenstein por pretender romper a barreira entre a vida e a
morte. A visão da natureza como exemplo perfeito de força vital pressupõe a
existência do ciclo entre a vida e a morte, pois a vida brota da decomposição
da matéria morta em uma projeção perpétua para o futuro. Nesse sentido, tal
espiral não pode ser rompida e, caso ocorra, estaríamos diante de um novo
paradigma, algo estranho a tudo existente em matéria de saber, normas, valores
e convenções. Tal é a condição existencial de um monstro. O monstro, ou pária social, é o sinal de que
algo dentro de uma sociedade vai mal. No entanto, longe de contemplarem a si
mesmas na imagem do monstro, as sociedades tendem geralmente a criar fronteiras
(reais/simbólicas) para projetar no alienígena social os seus males.
No
entanto, Mary Shelley não concederá tal mecanismo de escape a Frankenstein:
afinal, a sua “escultura viva” não seria uma abstração distante perdida numa
estatística, mas um ser individual especial (Übermensch) que, desenvolvendo razão e sensibilidade, era
capaz de se fazer presente à mente de seu criador como indivíduo e, portanto,
tornou-se impossível para Victor alienar-se dos efeitos imprevistos de sua obra
– desconforto do qual é poupada a maioria dos cientistas (do passado e do
presente), sob o manto protetor da “neutralidade científica”, especialização e
finalidades nobres. Assim, depois de ter aprendido a sua amarga lição, podemos
ouvir a seguinte advertência de Frankenstein a Walton:
“(…)Aprenda,
se não pelos meus preceitos, pelo menos por meu exemplo, o perigo que
representa a assimilação
indiscriminada da ciência, e quanto é mais feliz o
homem para quem o mundo não vai além do ambiente cotidiano, do que aquele que
aspira tornar-se maior do
que sua natureza lhe permite.(…) Eu seria o primeiro a
romper os laços entre a vida e a morte, fazendo jorrar uma nova luz nas trevas do mundo…”(Idem,
p.56) [Grifo meu]
Para
enfrentar problemas relacionados à fome, doenças infecto-contagiosas, à
pauperização do espaço urbano e à formação de um número crescente de pessoas
inclassificáveis (nesse sentido, “massa”), as elites governantes européias do
século XIX criaram as suas próprias versões prometéicas de reforma e
aperfeiçoamento dos espaços rurais e urbanos. Nessa trajetória, o novidade do
século XIX foi firmar cada vez mais o discurso médico-científico como voz de
autoridade na forma de se conceber “remédios” e “profilaxias” para a questão
social. Assim, a questão social – muitas vezes tratada como uma “questão
sanitária” – recebeu um tratamento elitista insensível a um justo equilíbrio
entre meios e fins. Ora, pretender criar uma nova espécie de homem – nascida de
um plano cientificamente traçado por um especialista – que fosse resistente à
morte por doenças e privações materiais poderia até romper a barreira entre a
vida e a morte, como pretendera Frankenstein, mas manteria sem abalos as
fronteiras sociais. Entretanto, tal como as massas pauperizadas da modernidade,
o monstro tem consciência, sensibilidade e migra para o “mal e a vingança”
quando é privado de afeto por ter uma aparência pouco atrativa.
Portanto,
a tragédia de Frankenstein contada por Mary Shelley não deixa de manifestar
certos incômodos com a forma que as elites governantes tratavam a questão
social na época. A arrogância social, a afetação nas afeições e a falta de
solidariedade constróem seus próprios monstros sociais, que são jogados “para o
nada social” ou “para o mal”. Nesse sentido, não é uma condenação moralista
religiosa contra o saber médico-científico que Mary Shelley nos apresenta, mas
uma provocação romântico-humanista que pretende lembrar que o homem, em sua
ânsia de tentar aperfeiçoar a si mesmo e a seu mundo, não pode perder a
sensibilidade, o que significa equilibrar de modo inclusivo as relações entre
meios e fins. Tal é a lição que Frankenstein quer deixar para Walton em seus
último momentos:
“(…)
Num acesso de desmedido entusiasmo, criei uma criatura racional e cabia-me,
dentro do limite dos meus poderes, assegurar-lhe a felicidade e o bem-estar.(…)
Recusei-me a criar[-lhe] uma companheira(…). Ele demonstrou perversidade e
egoísmo sem par. Destruiu meus amigos. Devotou-se ao extermínio de seres que
possuíam sensibilidade, felicidade e saber. E não sei até onde a sua sanha
vingativa poderá levá-lo. Por isso, devia morrer. Cabia a mim a tarefa de
pôr-lhe fim à existência, mas fracassei(…). Perturba-me…o fato de que a
sobrevivência do monstro signifique a continuidade do mal.(…)Adeus, Walton!
Busque a felicidade num viver tranqüilo e evite ser dominado pela ambição,mesmo que seja essa – aparentemente construtiva
– de distinguir-se no campo da ciência e dos descobrimentos.
Mas por que falo isso? Na verdade, se eu me arruinei nessas esperanças, pode
ser que outro seja bem sucedido(…)”(Idem, p.202) [Grifo meu]
Assim,
as últimas palavras de Frankenstein que concluem seu ciclo trágico estão longe
de anularem as esperanças de descobertas no campo da ciência, mas servem para
corrigir em Walton (que está na mesma posição do leitor) um tipo de ânsia de
saber que – por desequilibrar a relação entre meios e fins – perde a
sensibilidade em relação à beleza da vida, em qualquer de suas expressões. No
começo da tragédia, em uma carta à sua irmã, Walton conta as dificuldades de
sua viagem científica no Ártico e refere-se à perda de um marinheiro nos
seguintes termos:
“(…)A
vida ou a morte de um homem seriam um preço ínfimo a pagar pelo conhecimento
que eu buscava e pela vitória sobre as forças da natureza hostis à espécie
humana que esse conhecimento legaria à posteridade(…).(Idem, p.32)
Para
criar um contraponto sentimental a isso, Mary Shelley expõe logo em seguida a interlocução
de Frankenstein com Walton e, assim, coloca o leitor num plano de suspense e
segurança em relação àquilo que deve ser entendido como a “moral da história”:
“(…)
Somos criaturas brutas, apenas semi-acabadas quando nos falta alguém mais
sábio, melhor do que nós mesmos, para ajudar-nos no aperfeiçoamento da própria natureza
– débil e falha.(…)Você tem esperança, o mundo à sua
frente, e não tem motivo para desespero. Quanto a mim, perdi tudo, e não tenho
como recomeçar a vida(…). Não creio que o simples relato de meus infortúnios
lhe possa ser de alguma utilidade, mas
quando reflito que está seguindo o mesmo rumo, expondo-se aos mesmos perigos
que me tornaram o que sou, imagino que possa tirar algum proveito
moral da minha história; e isso poderá constituir
uma ajuda para orientá-lo em caso de êxito, ou para consolá-lo se fracassar.
Prepare-se para ouvir o relato de acontecimentos que normalmente poderiam ser
considerados fantásticos. Se estivéssemos em outro ambiente, como o que em
outras épocas cercava o nosso dia-a-dia, eu temeria a sua descrença. Porém,
muitas coisas parecem possíveis nestas regiões misteriosas; coisas que poderiam
provocar o riso daqueles poucos afeitos àsforças mutáveis e inelutáveis da natureza.
Por outro lado, minha história guarda, em sua própria essência, provas
insofismáveis da sua verdade(…).”(Idem, pp.32-34) [Grifo meu]
No
primeiro terço do século XIX, a sensibilidade romântica não tolera um mundo que
se torna monocromático e afetado por regras que impedem o livre desenvolvimento
do conhecimento e da sensibilidade. Nesse sentido, ela se inscreve em larga
medida na superação do ideal clássico como paradigma, buscando mais diversidade
de cores e objetos, pois possibilitam ao homem aprender novas coisas e
aperfeiçoar as antigas. Os escritos orientalistas deram aos românticos um
repertório de imagens-conceito para onde projetar seus sonhos de reforma da
civilização européia. No desenvolvimento da história de Mary Shelley, Clerval
aparece como aquele que ajuda seu combalido amigo Frankenstein a recuperar o
seu “verdadeiro eu”, perdido depois de uma longa e voluntária privação de luz,
cores e sensibilidade em meio às trevas de dois anos de seu projeto prometéico:
“…Clerval
jamais partilhara de meu gosto pela ciência natural. Suas inclinações,
dirigidas para a literatura, divergiam totalmente das minhas. Ele viera para a
universidade com a finalidade de aprofundar-se em línguas orientais…Voltando os
olhos para o Oriente, buscava descortinar os horizontes propícios a uma
carreira brilhante. Atraíam-no os idiomas persa, árabe e sânscrito, e eu
resolvi acompanhá-lo nesses estudos com a esperança de dissipar minhas íntimas
preocupações(…), de modo que o roteiro dos orientalistas me pareceu um
agradável convite, e eu fiquei contente em tornar-me discípulo do meu amigo.Não tencionava, como ele, adquirir conhecimento
crítico dos seus escritos, nem usufruir qualquer proveio prático.
Procurava apenas distração, sem pretender ir além de compreender-lhes o
significado. Meu esforço de aprendizagem foi compensado, pois descobri nos orientais um toque ameno
de melancolia, uma poesia de aceitação tão singela quanto profunda, como também
um grau de sabedoria e uma exaltação de alegria que jamais experimentei no
convívio com autores ocidentais. Através de suas páginas, a
vida parece um jardim florido dourado de sol. Que diferença da poesia épica e
heróica de Grécia e Roma!” (Idem, pp.69-70). “(…)Em Clerval eu via refletido o
meu antigo eu. Ele era um eterno curioso e ansiava por adquirir experiência e
aumentar seus conhecimentos. A
diferença de costumes que observava era para ele uma fonte inesgotável de
instrução e diletantismo(…).Aspirava visitar a
Índia, na crença de que, apoiado nos conhecimentos das várias línguas daquele
país…e nos conceitos que formara sobre sua formação histórica, poderia colher
observações aplicáveis ao desenvolvimento da sociedade européia(…)”(Idem,
pp.151-152) [Grifo meu]
Clerval
surge, então, como uma recuperação de luz, um novo experimentar da diversidade
sensível de outrora. No entanto, em vez do marmóreo referencial clássico,
Frankenstein teve nele a oportunidade singular de experimentar o brilho das
luzes e sensibilidades orientais. A existência de Clerval – que associa as
luzes do conhecimento e o diálogo sensível com a diversidade das coisas do
mundo – surge na história como um axioma oposto ao paradoxo
prometéico-existencial de Frankenstein. Este desequilibrou a relação entre
meios e fins em sua ânsia egoísta de glória científica e superação de séculos
de trevas. Como seu projeto foi executado às custas da privação de sol,
paisagem natural e afetos familiares, Frankenstein desequilibrou
psicologicamente a si mesmo e, por extensão, a sua obra. Assim, quanto mais
anti-romanticamente tentava superar as trevas, mas caía nelas. Por isso mesmo,
o paradoxo prometéico de Frankenstein é rico de implicações para a análise da
sensibilidade romântica em matéria de conhecimento: ele tinha em mente uma escultura
viva, uma criatura superior ao seu criador em beleza, sensibilidade,
inteligência, força e resistência; mas como tal criação poderia ser a imagem da
beleza se seu criador, para torná-la possível, privou-se de vida e afeição,
acercando-se somente da morte? A afeição e a sensibilidade são apresentado por
Mary Shelley como medidores para definir quando a busca do saber adquire
feições monstruosas. Lição cara para a posteridade…
Referências Bibliográficas:
BARZUN, Jacques. Classic, Romantic and Modern.
Chicago/London: Chicago University Press, 1975.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no
Ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
FOUCAULT, Michel. “O Nascimento da Medicina
Social”. In Microfísica do
Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995. pp.79-98
FURET, François. O Homem Romântico. Lisboa:
Presença, 1999.
RÉMOND, René. O Século XIX, 1815-1914. São
Paulo: Cultrix, 1993.
SAID, Edward W.. Cultura e Imperialismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Martin
Claret, 2001.
* Doutor em História Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil(2008); Professor Adjunto da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Publicado na REA, nº
26, julho de 2003, disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/026/26cvianna.htm