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A NATURALIZAÇÃO DO SI E A DEMONIZAÇÃO DO OUTRO


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A NATURALIZAÇÃO DO  SI E A DEMONIZAÇÃO DO OUTRO:EXORTAÇÃO À SUPERAÇÃO DO IMPASSE HISTÓRICO 

EXORTAÇÃO À SUPERAÇÃO DO IMPASSE HISTÓRICO
 
Aqui, quem vos fala, é alguém que tem um amor profundo pelo país, pelo povo brasileiro, por todas as nações do mundo, por todos os cidadãos do mundo indistintamente, e, por extensão, pelo próprio planeta Terra. Estamos na hora de acordar do nosso sono profundo, buscando levantar do berço esplêndido em que nascemos para clamarmos pela paz na Terra e aos Homens de boa vontade. Estamos na hora de recolhermos as armas da batalha e produzirmos os instrumentos da reunificação.
E por que? Porque precisamos entrar, urgentemente, num período de reconciliação. Reconciliação plena e profunda com os ditames da Vida, onde seja possível sentarmos de frente a um espelho, e buscarmos nos ver, a nós mesmos, refletidos. Com as marcas da nossa história peculiar, com as nossas rugas produzidas pelo passar do tempo e com as marcas da nossa vida escancarada em nosso rosto, precisamos ser capazes de ouvir a voz da nossa própria consciência. Para que? Para que tenhamos a coragem cívica de depor as armas de um passado incerto e de apostar na construção de um mundo melhor para todos, ungidos pela fé e pela esperança…
Para que isto seja possível, precisamos, inclusive, ser capazes de nos lembrar de que, antes de sermos cidadãos deste ou daquele país, deste ou daquele estado, deste ou daquele município, somos, sobretudo, seres humanos que coexistem no planeta terra, com o perpassar das eras que a nossa própria história civilizatória forjou. E é esta particularidade que precisamos ressaltar nestes momentos (ainda) sombrios que vivemos. Quando a guerra se avizinha, quando o barulho das baionetas se ouve nas entranhas da terra, quando a morte de milhões de pessoas nos espreita na noite escura, ainda temos a chance de acordar e de levantar a bandeira branca da paz, negociando com a ousadia dos grandes generais.
Porque a vida é o maior bem de todos os seres humanos. Digamos não às ideologias, não aos manuais travestidos de orientação doutrinária, não aos valores arraigados e continuamente reforçados pelas mãos daqueles que nos querem deitados e inertes. Ao invés disso, digamos sim à força potencializada daquilo que temos de mais precioso: o amor e a crença no Divino que temos dentro de nós. Aquilo que nos alimenta e pode nos catapultar num futuro radiante. Aquilo que nos mostra que, acima do Eu, de Egos e de Narcisos, temos um Nós que suporta o peso da Humanidade.
Não podemos continuar a naturalizar o Ego e a demonizar o Outro. Precisamos ser capazes de entender o Outro como Ele é, respeitando-o nas suas diferenças, valores e idiossincrasias, sabendo, no mais profundo do nosso ser,  que ideologias são ungidas pela história de cada um. Por isso parecem sempre tão naturais e naturalizadas! Mas elas são, na verdade, construções simbólicas e não verdades per se. Se nós conseguirmos identificar este segredo e perscrutarmos as suas imbricações mais densas talvez consigamos descobrir as suas causas mais recônditas e superar as constrições que elas causam na nossa própria vivência pessoal, social e política.
É fato insofismável que todos nós temos as nossas próprias visões de mundo, porém não podemos nunca torná-las univocamente cristalizadas. Precisamos, isso sim, aceitar as diferenças que existem entre as pessoas e aprender a conviver com elas. Harmonicamente. Pacificamente. Lembrando sempre que a visão dicotômica de mundo, que coloca, peremptoriamente, Um contra o Outro numa confrontação sistemática, é parteira de uma visão conflituosa de mundo, envolvendo pessoas, gênero, raças, credos, etnias e nacionalidades.
Daí porque, não podemos nos esquecer de que tal visão precisa ser superada para que possamos construir, verdadeira e irreversivelmente, a paz e a harmonia que todos os Seres Humanos almejam… No espaço da nossa casa, da nossa família, da nossa comunidade, do nosso município, do nosso estado, do nosso país, do nosso continente e, quiçá, do nosso próprio planeta… Para que possamos resgatar a simplicidade, a humildade e a pureza das criancinhas. Para que possamos ser felizes em sua plenitude. E para que possamos, de fato, conseguir descobrir e reiterar o Divino que existe dentro de cada Um de Nós…   
 Verônica Lima
Brasília, 24 de novembro de 2020.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Verônica Lima Brasília, 24 de novembro de 2020.

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Verônica Lima

Um Kafka mais atual que nunca


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Nascido há 130 anos, escritor checo abordou impotência do indivíduo diante de poderes anônimos. Sua “Colônia Penal” parece antecipar Guantánamo

Na Agência Deutsche Welle

Gregor Samsa está deitado na cama, totalmente indefeso. Suas costas são duras como uma couraça. Erguendo a cabeça, ele vê um ventre marrom e suas perninhas finas e descontroladas, agitando-se diante de seus olhos. É este o corpo de um ser humano? Não, é um gigantesco inseto daninho, uma espécie de besouro repulsivo, que na noite anterior ainda era um homem.

O conto A metamorfose, de 1912, é o texto narrativo mais famoso de Franz Kafka. Uma história macabra, angustiante, sobre a vulnerabilidade do ser humano e sua precária condição no mundo, que da noite para o dia pode transformá-lo em pária.

Manuscrito original de “O processo” está preservado em Marbach

Mas por que o autor “empacotou” sua metáfora numa forma tão enigmática? Ele não podia tê-la apresentado de um modo mais “realista”, “verossímil”? Isso é o que pergunta em carta a Kafka um certo Dr. Siegfried Wolff, que lera o conto logo após seu lançamento.

“Prezado Senhor: o senhor me fez muito infeliz. Comprei a sua Metamorfose e a presenteei à minha prima. Mas ela não sabe como explicar a história. Minha prima a deu à mãe dela, que também não encontra explicação. Só o senhor pode me ajudar. O senhor tem que me ajudar, pois foi quem me meteu nisso. Portanto, me diga o que a minha prima deve pensar da Metamorfose.”

O ser humano como engrenagem

Por que Kafka escrevia de forma assim tão soturna, submetendo suas personagens a situações que não ocorrem na realidade, pelo menos no sentido literal? Pois essa foi uma opção que também lhe dificultou a trajetória, impedindo que, ainda em vida, ele se tornasse um escritor aclamado pelo público.

O germanista Thomas Anz, docente da Universidade de Marburg e autor de um estudo sobre a vida e obra de Franz Kafka (1883-1924), o considera um fantástico poeta do absurdo. Sua literatura introvertida, cifrada, é, possivelmente, o equivalente formal a todas as repartições jurídicas e homens honoráveis com que suas personagens se confrontam.

Isso, prossegue Anz, aplica-se em especial às instâncias estatais, como as descritas no romance O processo, ou, em versão ainda mais implacável, no conto A colônia penal – ambos textos que refletem a impotência do indivíduo diante de poderes anônimos.

Um tribunal civil no primeiro caso, uma corte militar, no segundo, levantam imputações totalmente arbitrárias, cuja verdadeira motivação o acusado não consegue sequer vislumbrar. Por que os réus se tornaram culpados? Eles não sabem. Tal situação de indefensibilidade, uma vivência central nas sociedades de massa modernas, é o que se denomina “kafkiana”.

Essa vivência, Charles Chaplin traduziu numa imagem eloquente em seu filme Tempos modernos, quando, inteiramente indefeso, o protagonista, um operário de fábrica, se vê entalado entre as gigantescas engrenagens de uma máquina em funcionamento. Um símbolo visual com que Kafka certamente teria se identificado.


Orson Welles levou “O processo” às telas (de pé, Anthony Perkins)

Profeta dos terrores da vida moderna

Os textos kafkianos expressam o nervosismo de sua época diante do fenômeno da modernização, então em curso, define Michael Braun, diretor do departamento de literatura da Fundação Konrad Adenauer.

O crescimento das cidades, novos meios de transporte como o trem e, acima de tudo, o automóvel, novas técnicas de produção e um Estado que se alastrava, dominante – tudo isso era novo e preocupante. E essa intranquilidade perdura até nossos dias.

“Por isso costuma-se evocar Kafka como profeta, como alguém que, por volta de 1900, já antecipava aquilo que se tornaria realidade em meados do século passado e mais além, ou seja: o ser humano inteiramente controlado e também torturado”, explica Braun. Assim, por exemplo, é válido traçar uma ligação direta entre a colônia penal de Kafka e o campo de prisioneiros de Guantánamo, hoje.


Casa da família Kafka em Praga

Patchwork de identidades

A sensação de impotência descrita pelo autor judeu de língua alemã, natural de Praga, persiste até hoje, pelo menos em parte. Paradoxalmente, as sociedades cujos cidadãos gozam de grandes liberdades também trazem em si um certo temor. Uma causa possível para isso é a perda das instâncias tradicionais de autoridade: esse fenômeno, que ocupou Kafka sem cessar, inquieta as pessoas até hoje, afirma Anz.

“As autoridades são percebidas como algo ameaçador, mas em parte são também alvo de zombaria. Tudo isso produz uma certa desorientação. Essas são vivências da era moderna que subsistem até hoje, e que um autor como Kafka representou de forma brilhante e exemplar.”

Quanto à ambivalência que permeia os textos de Franz Kafka, esta também se origina na identidade multifacetada do autor – a qual, por sua vez, é mais um fenômeno típico da modernidade, ressalta Braun.

“Kafka era judeu, era advogado, era escritor, nasceu em Praga, era tcheco e alemão. E, em meio a essa convivência e confusão de identidades distintas, buscar um Kafka que fale palavras claras será sempre um problema.” Entretanto, ressalva o germanista da Fundação Adenauer, “é justamente esse problema que constitui a atratividade dos textos de Kafka. Pois, se esse problema não existisse, qual seria a graça de se ler Kafka?”.

 

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Razão, Irracionalidade e Literatura

 

by Antonio Ozaí da Silva in literatura, política, sociedade

A intolerância é “uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas crenças e convicções”, afirma Rouanet.[1] Trata-se de uma forma de pensar e agir que “se atualiza em manifestações múltiplas, de caráter religioso, nacional, racial, étnico e outros”. A história das sociedades humanas até o presente é uma história de permanente intolerância. É claro que em meio à crueldade e barbárie resultante de intolerâncias mútuas, há sopros de convivência pacífica fundada no respeito e tolerância. Contudo, como escreve Umberto Eco, “é como se nos dois últimos séculos, e ainda antes, esse nosso mundo tivesse sido percorrido por sopros de intolerância, esperança e desespero, todos juntos”. [2] Observemos que o autor se refere ao século XIV – no qual contextualiza o seu célebre romance O Nome da Rosa. Porém, estas palavras permanecem válidas em nosso presente e, em especialmente, se retornarmos no tempo e no espaço histórico.

Se a história nos fornece exemplos da irracionalidade que nutre os barbarismo que envergonham as gerações posteriores, ela também oferece modelos de resistência e de tolerância. A literatura, por sua vez, também expressa uma enorme contribuição. Mais do que os tratados filosóficos, sociológicos etc., a literatura tem a vantagem de trabalhar sobre a matéria bruta, os personagens criados em toda a sua plenitude e fragilidade que caracterizam o humano. Nestes, o racional e o irracional mesclam-se em atitudes e contextos que ilustram as nossas contradições e dilemas. A literatura contribui ainda para a compreensão dos contextos históricos e também para uma análise sociológica, política e filosófica dos caminhos percorridos por nossos ancestrais e dos desafios que temos diante da nossa geração e das que virão.

Tomemos o romance de Umberto Eco: este traduz as lutas internas na Igreja Católica, em torno de questões aparentemente bizantinas, mas que expressam na essência o problema do poder sobre a instituição, a sociedade e os homens e mulheres. Esta luta por verdades que se tornem autorizadas e definitivas, indica a necessidade não apenas de suprimir outras verdades, mas também os seus portadores. Em outras palavras, a intolerância carrega em si a necessidade da eliminação física do oponente.

Dostoievski percebeu esta dimensão. No limite, o inquisidor condenaria à fogueira o próprio Cristo. O clássico autor russo, em sua estupenda criatividade, imagina na fala do seu personagem, em Os Irmãos Karamazovi, como reagiriam os homens e mulheres e, principalmente a Igreja Católica Apostólica Romana, enquanto instituição, se Jesus Cristo ressurgisse. “Apareceu docemente, sem se fazer notar, e – coisa estranha – todos o reconheciam”, escreve. Ele retorna em meio à multidão, em frente à Catedral de Sevilha, no momento em que carregavam o caixão de uma criança de sete anos. “Se és tu, ressuscita minha filha”, diz-Lhe o sofrido pai. Cristo contempla-o cheio de compaixão e sua voz pronuncia docemente: “Talitha Kumi” – “Jovem, levanta-te”.[3] A criança ressuscita e multidão extasiada, chora e grita. Neste momento, diante dele surge o grande inquisidor:

“É um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, de rosto dessecado, olhos cavados, mas onde luz ainda uma centelha. Não traz mais a pomposa veste com a qual se pavoneava ontem diante do povo, enquanto eram queimados os inimigos da Igreja Romana. Retomara sua velha batina grosseira. Seus sombrios auxiliares e a guarda do Santo Ofício seguem-no a uma distância respeitosa. Detém-se diante da multidão e observa de longe. Viu tudo, o caixão depositado diante dele, a ressurreição da menininha, e seu rosto ensombreceu-se. Franze suas espessas sobrancelhas e seus olhos brilham com um clarão sinistro. Aponta o dedo e ordena aos guardas que prendam. Tão grande é o seu poder e o povo está de tal maneira habituado a submeter-se, a obedecer-lhe tremendo, que a multidão se afasta imediatamente diante dos esbirros; em meio dum silêncio de morte, estes o pegam. Como um só homem, aquele povo se inclina até o chão diante do velho inquisidor, que o abençoa sem dizer palavra e prossegue seu caminho”. [4]

Cristo é preso, acusado de estorvar o trabalho da Santa Madre Igreja, feito em seu nome. E, em nome de Deus, muitos serão perseguidos, torturados e queimados. A heresia precisa sucumbir às chamas junto com o próprio herege. Em outras épocas, braços armados substituirão as labaredas, e corpos e mentes hereges foram encarcerados, até que, executados, se extingam no tempo e espaço. Os regimes totalitários aperfeiçoaram este mecanismo macabro. George Orwell, em 1984, percebeu o significado da nova inquisição. Como analisado em “A impotência da argumentação racional (ou quando 2+2=5)”, não se trata mais de destruir a vítima ou arranca-lhe a confissão que o salve – se não o corpo, pelo menos a alma. “Não apenas destruímos nossos inimigos; nós os modificamos. Compreendes o que quero dizer?”, afirma o torturador à vítima. Isto significa que não basta arrepender-se ou acatar a verdade instituída: é preciso estar convicto, introjetar os ensinamentos da doutrina, render-se por “livre e espontânea vontade”. Trata-se de convencer-se de que a realidade não existe fora do âmbito do pensamento único ditado pelo Partido. E, se este afirma que 2+2 resulta em cinco, é preciso aceitar tal verdade.[5]

O dogma do partido e do Estado é racionalizado. Não se trata mais do ódio subjetivo, mas de um ódio fundado na razão e instrumentalizado: o fanático e o sectário manifestam sua intolerância como se esta fosse uma necessidade racional, em prol de objetivos humanitários, não raras vezes, fundamentado num discurso justificador das atrocidades cometidas em nome da humanidade ou dos oprimidos.

A intolerância ultrapassa, portanto, os limites da irracionalidade. Não se pode acusar o dogmático de agir apenas motivado pelos sentimentos; quando se trata de guerras ideológicas, há que se considerar o que se poderia denominar como a Razão do Estado incorporada pelos indivíduos que agem em seu nome. Não raro, atitudes bárbaras encontram justificativas e defensores racionais. Novamente, a metáfora do grande inquisidor, nos ajuda a compreender:

“… queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e para a sociedade! Vês aquelas pedras naquele deserto árido? Muda-as em pão e atrás de ti correrá a humanidade, como um rebanho dócil e reconhecido, tremendo, no entanto, no receio de que tua mão se retire e não tenham eles mais pão”. [6]

Os homens e mulheres preferem o pão (segurança) à liberdade. Eis o argumento do grande inquisidor. O ser humano está disposto a sacrificar a liberdade em nome da segurança, e, para que esta prevaleça, aceita todos os meios – ainda que estes contradigam a própria noção de civilização do mundo ocidental. Os eventos posteriores ao 11 de setembro de 2001 e os recentes episódios envolvendo militares norte-americanos em sessões de tortura no Iraque, comprovam-no.

A intolerância, portanto, tem um fundamento irracional, mas também racional. Em nome da segurança, o homem aceita racionalmente a intolerância do Estado contra outros povos e culturas – tomados em geral como um todo homogêneo que ameaça a ordem interna. Por outro lado, os indivíduos, organizados na chamada sociedade civil, podem impor leis e normas que impeçam ou limitem as manifestações de intolerância institucionalizada.

Mas seria ingênuo debitarmos a intolerância à capacidade do Estado e das classes dirigentes em manipular o povo simples para a defesa de interesses econômicos e políticos particularistas. É certo que as desavenças em torno da fé também atendiam aos objetivos do poder político e das classes dirigentes, mas a verdade é que isto só se torna possível porque os indivíduos internalizam a aversão e ódio ao outro, ao que pensa ou manifesta sua fé de maneira diferente da dele. A intolerância está enraizada em nosso ser, introjetada em nossa mente. Ela se manifesta tanto nas grandes questões que envolvem disputa políticas e territoriais, guerra entre deuses etc., mas também em nossos costumes e na forma como encaramos o diferente.

Victor Hugo, em Os Trabalhadores do Mar, nos dá um exemplo de intolerância fundada nos costumes e na resistência conservadora das velhas gerações em relação ao que se apresenta como novo. Seu personagem principal, Gilliatt, tem a antipatia da comunidade simplesmente porque não compartilha dos seus preceitos e tinha um modo de vida considerado estranho. Mas há também o preconceito em relação ao desenvolvimento industrial, isto é, o aparecimento do navio a vapor. Comentando a reação dos pescadores, o autor, com fina ironia, escreve:

“A esses bons pescadores de então, outrora católicos, agora calvinistas e sempre beatos, pareceu-lhes aquilo o inferno flutuante. Um pregador da terra tratou da questão: “Temos nós o direito de fazer trabalhar juntos o fogo e a água que Deus separou?” Aquele animal de ferro e fogo não era a imagem de leviatã? Não era isso refazer o homem, a seu modo, o primitivo caos?” [7]

A máquina foi assemelhada a uma criatura daquele cujo nome é impronunciável. Aqui Victor Hugo reafirma um dos fundamentos do preconceito e da intolerância: a insegurança e o medo. “Os habitantes simplórios das costas e dos campos aderiam à reprovação pelo incômodo que lhes causava a novidade”, afirma. A máquina assusta o camponês, mete-lhe medo. [8] Por trás da resistência ao novo e do medo, havia na verdade uma disputa de cunho econômico: a máquina permitia um melhor transporte da carga, com maior rapidez e garantindo sua preservação. Portanto, potencializava-se os lucros e, por conseguinte, os prejuízos dos que não dominavam esta tecnologia:

“Todos os proprietários de navios de carreira entre a ilha guernesiana e a costa francesa clamaram imediatamente. Denunciaram aquele atentado feito às Santas Escrituras e ao monopólio. Alguns templos fulminaram. Um reverendo, por nome Elihu, chamou ao vapor uma libertinagem. O barco à vela foi declarado ortodoxo. Viu-se distintamente que eram pontas do diabo as pontas dos bois que o vapor trazia e desembarcava. Durou o protesto um bom par de dias”.[9]

Com o tempo, começaram a perceber as vantagens econômicas propiciados por esta máquina demoníaca. Os espíritos conservadores arrefeceram-se e alguns arriscaram-se a adotar o Devil-Boat. A necessidade econômica, da mesma forma que alimentou o preconceito e a intolerância, forneceu os elementos para a sua superação. Como em outras conjunturas históricas, o fator econômico foi precisamente o sustentáculo da intolerância – pelo menos até que esgotasse as suas velhas potencialidades e desse lugar ao latente, o novo.


[1] ROUANET, Sergio Paulo. “O Eros da diferença”. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 09.02.2003. (Publicado também in: Revista Espaço Acadêmico, n. 22, março de 2003)

[2] ECO, Humberto. O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003, p.193.

[3] São Lucas, 7, 14. Palavras em linguagem aramaica, pronunciadas por Jesus Cristo quando da ressurreição do filho da viúva de Nain. In: DOSTOIÉVSKI, F. Os Irmãos Karamazov. São Paulo: Abril Cultural, 1970.

[4] Idem, p.187.

[5] O personagem Rubachov, em O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler, também exemplifica essa máxima: “O Partido nunca pode errar – disse Rubachov . – Eu e o camarada podemos cometer um erro. O Partido não. O Partido, camarada, é mais do que você e eu e milhares de outros como você e eu. O Partido é a corporificação da idéia revolucionária da História. A História não conhece escrúpulos nem vacilações. Inerte e infalível, ela marcha para o seu alvo. Em cada curva do seu percurso deixa a lama que arrasta e os cadáveres afogados. A História conhece o seu caminho, não erra. Quem não tem fé absoluta na História não pertence às fileiras do Partido”. (Ver: KOESTLER, A. O Zero e o Infinito. Porto Alegre: Editora Globo, 1964, p. 31-32).

[6] DOSTOIÉVSKI, F. Os Irmãos Karamazov. São Paulo: Abril Cultural, 1970, p.189.

[7] HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar. São Paulo: Nova Cultural, 2003, p.59.

[8] Idem, p. 60.

[9] Idem, p. 63.

Tarde Extra Chique

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