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A violência contra povos indígenas no Brasil


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Conselho Indigenista Missionário analisou dados referentes ao ano de 2017. “Com Temer no comando, os agressores se sentiram mais seguros para cometer seus crimes”, diz secretário-executivo da entidade

por redação RBA publicado 30/09/2018 16h54

MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Violência contra índios

Sem homologar nenhuma terra indígena em 2017, Temer é o pior presidente neste quesito desde a redemocratização

São Paulo – Dos 19 tipos de violência analisados no Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2017, lançado na quinta-feira (27) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), houve aumento no número de casos em 14 índices.

“Esta edição do Relatório explicita uma realidade de absoluta insegurança jurídica no que tange aos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas no país. Para piorar, os Três Poderes do Estado têm sido cúmplices da pressão sobre o território, que pretende permitir a exploração de seus recursos naturais, e resulta em violência nas aldeias”, explicou Roberto Liebgott, coordenador Regional Sul do Cimi e um dos organizadores da publicação.

Durante o lançamento da publicação anual, em Brasília, ele destacou a atuação da bancada ruralista em garantir as condições “para que um novo processo de esbulho das terras tradicionais seja consolidado no país”.

Intitulado “Violência contra o patrimônio”, o primeiro capítulo do relatório mostra que houve aumento nos três indicadores analisados: omissão e morosidade na regularização de terras (847 casos); conflitos relativos a direitos territoriais (20 casos); e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio (96 casos registrados).

Demarcação

O estudo do Cimi (órgão vinculado à CNBB), constata que o governo de Michel Temer não homologou nenhuma terra indígena em 2017, transformando-se no presidente com o pior desempenho neste quesito. Em sua gestão, o Ministério da Justiça assinou apenas duas Portarias Declaratórias e a Fundação Nacional do Índio (Funai) identificou somente seis terras como sendo de ocupação tradicional indígena.

“Das 1.306 terras reivindicadas pelos povos indígenas no Brasil, um total de 847 terras (o que representa 64%) apresentam alguma pendência do Estado para a finalização do processo demarcatório e o registro como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Destas 847, um volume de 537 terras (63%) não teve ainda nenhuma providência adotada pelo Estado”, destaca o Cimi. Segundo a entidade, tal situação demonstra a omissão da União com o tema, considerando que a Constituição Federal de 1988 determinou a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil até 1993.

Violência contra a pessoa

O segundo capítulo do relatório aborda a “violência contra a pessoa”, e revela que houve um agravamento da situação em sete dos nove indicadores avaliados: tentativa de assassinato (27 casos); homicídio culposo (19 casos); ameaça de morte (14); ameaças várias (18); lesões corporais dolosas (12); racismo e discriminação étnico-cultural (18); e violência sexual (16).

Nos casos de assassinato de indígenas, o ano de 2017 registrou 110 casos, oito a menos do que em 2016. Os três estados com o maior número de ocorrências registradas foram Roraima (com 33 mortes), Amazonas (28) e Mato Grosso do Sul (17). Porém, o Cimi alerta que a própria Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) reconhece que este dado é parcial e que ainda pode receber novas notificações de assassinatos.

Suicídio e mortalidade na infância

O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2017 contém também dados parciais de suicídio e mortalidade indígena na infância. Foram 128 casos de suicídio registrados pela Sesai, 22 a mais do que em 2016.  Amazonas, com 54 casos, e Mato Grosso do Sul, com 31, foram os estados com as maiores ocorrências de suicídio de índios.

Em relação à mortalidade de crianças de 0 a 5 anos, do total de 702 casos registrados, 236 foram no estado do Amazonas, 107 em Mato Grosso e 103 em Roraima. Assim como na estatística de homicídios de indígenas, o Cimi destaca que da Sesai sobre suicídio e mortalidade na infância são parciais e podem ter alterações.

“Com Temer no comando do Executivo federal, os agressores se sentiram mais seguros para cometer seus crimes. A invasão e o esbulho possessório alastraram-se como pólvora sobre os territórios e ameaçam a sobrevivência de muitos povos, inclusive os isolados. Está claro que o Brasil foi tomado de assalto, feito refém de interesses privados da elite agrária, ‘agraciada’ com novas ‘capitanias hereditárias’, que são distribuídas em troca da morte dos povos que habitam os territórios”, denuncia o secretário-executivo do Cimi, Cleber Buzatto, em seu artigo de apresentação do relatório.

Com informações do Cimi

Belo Sun: Ouro do rio Xingu, no Brasil, vai para o Canadá


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Entrevista especial com Rogério Almeida. “É o maior empreendimento de mineração de ouro a céu aberto do país e deverá retirar 50 toneladas de ouro no prazo de 12 anos. Um prazo curtíssimo”, e será tudo enviado para o Canadá,   constata o pesquisador. Segundo ele, a empresa canadense Belo Sun “tomou posse dos antigos garimpos Grota Seca, Galo e Ouro Verde, que existem às margens do rio Xingu desde os anos 1940. Isso já provoca estranheza num cenário marcado pela desordem fundiária, onde a maioria das terras é tutelada pela União.

Belo Sun – Ouro do Brasil vai para o Canadá. Exploração de OURO: o surgimento de um novo Carajazão

Fonte: http://port.pravda.ru

O projeto Belo Sun, a ser executado no estado do Pará, “é o maior empreendimento de mineração de ouro a céu aberto do país e deverá retirar cerca de 50 toneladas de ouro no prazo de 12 anos”, informa Rogério Almeida, em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail.

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Segundo ele, a empresa Belo Sun “tomou posse dos antigos garimpos Grota Seca, Galo e Ouro Verde, que existem desde os anos 1940. Isso já provoca estranheza num cenário marcado pela desordem fundiária, onde a maioria das terras é tutelada pela União. Ali vivem os povos indígenas Juruna e Arara e outros povos isolados, além de lavradores, extrativistas e pescadores que sofrem com a espoliação e a expropriação promovidas pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte“.

Almeida relata que há seis meses os garimpeiros estão “impedidos de operar nas antigas áreas”, e a empresa prometeu reassentar mais de mil famílias. No entanto, ressalta, “na Ressaca e na Ilha da Fazenda, que ficam bem próximas, o clima é de incerteza e insegurança. As populações já socializam a desordem que a usina hidrelétrica de de Belo Monte provoca. É ali que o Xingu terá a sua vazão reduzida em perto de 80%. É um impacto absurdo e tem implicações no deslocamento das pessoas, nas fontes de recursos que a natureza possibilita. As pessoas não sabem informar sobre o reassentamento. Parte da Ressaca é de projeto de assentamento da reforma agrária”.

Rogério Almeida é graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Maranhão e mestre em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará, com a dissertação intitulada Territorialização do campesinato no sudeste do Pará, a qual foi laureada com o Prêmio NAEA/2008. Atualmente leciona na Faculdade de Tecnologia da Amazônia.

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CONFIRA A ENTREVISTA:

IHU On-Line – Em que consiste a atividade da Belo Sun e desde quando a empresa atua no Brasil?

Rogério Almeida – Tomei conhecimento da existência da Belo Sun no Brasil agora, em visita às comunidades da Vila da Ressaca e da Ilha da Fazenda, que serão impactadas pelo projeto da hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu, no território do município de Senador José Porfírio.

Conforme o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA apresentado à Secretaria de Meio Ambiente do Pará – SEMA, trata-se de uma subsidiária brasileira da Belo Sun Mining Corporation, pertencente ao grupo Forbes & Manhattan Inc., um banco mercantil de capital privado que desenvolve projetos de mineração em todo o mundo.

A Belo Sun passa a integrar a aquarela de grandes corporações de mineração que operam no estado do Pará, competindo com a Vale, a norte americana Alcoa, a suíça Xstrata, a francesa Imerys, a Reinarda, subsidiária da australiana Troy Resourses, a norueguesa Norsk Hydro e a chilena Codelco.

IHU On-Line – O que é o projeto Belo Sun?

Rogério Almeida – É o maior empreendimento de mineração de ouro a céu aberto do país e deverá retirar 50 toneladas de ouro no prazo de 12 anos. Um prazo curtíssimo. Localiza-se numa região que já será profundamente impactada pela usina hidrelétrica de Belo Monte. A Belo Sun tomou posse dos antigos garimpos Grota Seca, Galo e Ouro Verde, que existem desde os anos 1940. Isso por si só já provoca estranheza num cenário marcado pela desordem fundiária, onde a maioria das terras é tutelada pela União. Ali vivem os povos indígenas Juruna e Arara e outros povos isolados, além de lavradores, extrativistas e pescadores que já sofrem com a espoliação e a expropriação promovidas pela hidrelétrica de Belo Monte.

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O futuro das pessoas que moram na Volta Grande do Xingu é incerto pelo conjunto de impactos que os dois projetos irão produzir. A mineração do ouro usa cianeto, dragas e dinamite, e deixará uma montanha de resíduos ali. Externalidades negativas (ou seja, a destruição completa da natureza) é uma matriz da mineração. O projeto aprofunda ainda mais a condição econômica da Amazônia como uma grande província exportadora de recursos naturais. Uma colônia baseada em commodities.Há perto de 500 pedidos de prospecção protocolados junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM somente na Volta Grande do Xingu, e, desse total, 228 possuem foco no ouro.

IHU On-Line – Como está ocorrendo a exploração de minério no Pará?

Rogério Almeida – O minério é o principal item da balança comercial do estado, responde por quase 100% do Produto Interno Bruto – PIB. Em todo o território existe minério, de seixo a ouro. O ferro da província de Carajás, explorada desde a década de 1980, continua sendo o principal. O estado é duplamente saqueado, por conta da renúncia fiscal da Lei Kandir (lei complementar federal nº 87, de 13 de setembro de 1996). Ela desobriga as empresas de recolher o Imposto de Circulação de Mercadoria e Serviço – ICMS dos produtos primários e semielaborados. Literalmente fica somente o enorme buraco e a destruição total do meio ambiente.

Ao longo dos anos da mineração em Carajás, os péssimos indicadores socioeconômicos não sofreram alteração. A fronteira agromineral consolidou o sul e o sudeste do Pará como os que mais desmatam, mais assassinam camponeses na luta pela terra no Brasil, e com municípios nos primeiros lugares entre os mais violentos do país e de vulnerabilidade para a população jovem. Nenhum município tem renda per capita que alcance um salário mínimo por mês. O município vizinho da mina de Carajás, Curionópolis, tem a renda per capita de R$ 108,15, quase a mesma da pequena Palestina do Pará, R$ 106,64.

IHU On-Line – Quem são os garimpeiros da Vila da Ressaca? Como eles atuavam antes da entrada da Belo Sun no Pará?

Rogério Almeida – Conforme informações da cooperativa dos garimpos da Vila Ressaca, são perto de 600 garimpeiros. Eles trabalham em condições marcadas pela precariedade, sem vínculo empregatício. Ficavam somente com 20% do ouro encontrado. O “patrão”, o dono do local da exploração, bancava com máquinas e combustível o processo, e ficava com 80%.

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IHU On-Line – Em que consiste o conflito deles com a Belo Sun?

Rogério Almeida – Há seis meses os garimpeiros estão impedidos de operar nas antigas áreas. Eles explicitam que perderam a principal fonte de renda. A vila, hoje, tem um aspecto de cidade fantasma. As áreas foram negociadas com a Belo Sun, como falei antes, num ambiente marcado pela ilegalidade fundiária.

IHU On-Line – Qual é a proposta de reassentamento das famílias da Vila Ressaca, Galo e Ouro Verde, feita pela Belo Sun?

Rogério Almeida – Em documento formal a empresa afirma que promoverá o reassentamento de mil famílias. No entanto, na Ressaca e na Ilha da Fazenda, que ficam bem próximas, o clima é de incerteza e insegurança. As populações já socializam a desordem que a hidrelétrica de Belo Monte provoca. É ali que o Xingu terá a sua vazão reduzida em perto de 80%. É um impacto absurdo e tem implicações no deslocamento das pessoas, nas fontes de recursos que a natureza possibilita. As pessoas não sabem informar sobre o reassentamento. Parte da Ressaca é de projeto de assentamento da reforma agrária.

IHU On-Line – Qual a atual situação da exploração mineral em Carajás?

Rogério Almeida – Carajás vivencia uma grande inflexão com o desenvolvimento do maior projeto de mineração da Vale ao longo dos seus 40 anos de vida, o Projeto de Mineração da Serra Sul (S11D), localizado no município de Canaã dos Carajás, e que vai explorar ferro. O S11D desponta no cenário atual como uma representação do Grande Carajás no século XXI.

Um novo Carajazão, como o foi a primeira versão da década de 1980. O mesmo consiste em profundas alterações nos cenários econômicos, sociais e políticos em Carajás, que compreende desde a mina até o porto, em São Luís, no Maranhão, pressionando reservas ambientais, vilas, territórios ancestrais e projetos de assentamentos rurais. O S11D encontra-se nos limites dos municípios a sudeste do Pará, Canaã dos Carajás e Parauapebas.

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Após o esgotamento dos recursos minerais explorados, sobra somente a destruição total do meio ambiente …

Com o projeto, a mineradora vai incrementar a produção de ferro em 90 milhões de toneladas por ano, mas com capacidade de dobrar a produção. O mercado asiático tem sido o destino do minério de ferro de excelente teor das terras dos Carajás, em particular a China e o Japão. A previsão é que a usina inicie as operações até 2016. A iniciativa, que inclui mina, duplicação da Estrada de Ferro de Carajás – EFC, ramal ferroviário de 100 km e porto, está orçada em US$ 19,5 bilhões.

Os recursos estão distribuídos da seguinte forma: a logística consumirá US$ 14,1 bilhões; US$ 8,1 bilhões serão usados na mina e na usina; enquanto US$ 2 bilhões serão usados durante o ano.

Como em outros empreendimentos na Amazônia, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES é o responsável pelo financiamento da maior parte dos recursos, ao lado do banco japonês Japan Bank International Cooperation – JBIC. O projeto é maior ou equivalente à primeira versão do Programa Grande Carajás – PGC, iniciado há quase 30 anos.

O minério que sairá da Serra Sul é considerado ainda de melhor teor que o extraído da Serra Norte, avaliado como excelente. O teor da S11D é de 65%. A Vale é, atualmente, a líder mundial no mercado de ferro, responsável por 310 milhões de toneladas por ano. Como em outros casos registrados na região, o início do projeto mobiliza uma série de alterações na cidade que abriga a mina e em municípios do entorno.

IHU On-Line – Fala-se de um possível aumento de conflitos no Pará por conta da exploração de ouro. O senhor vislumbra algo nesse sentido?

Rogério Almeida – Faz-se necessário uma leitura sobre o contexto dos grandes projetos na Amazônia, em consonância com obras de infraestrutura do estado para que os mesmos possam ser viabilizados. Esse conjunto coloca em oposição as populações locais, sempre muito pobres e as grandes corporações. É uma luta desigual, marcada pela derrota dos primeiros, que ao longo dos séculos são os penalizados com todo tipo de desrespeito, expropriação, espoliação e morte. Não tem ocorrido nenhuma alteração.

IHU On-Line – Como o estado do Pará se manifesta diante da atuação da empresa na região?

Rogério Almeida – Ele garante as condições para o empreendedor detentor de capital, ou que se capitaliza com os recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, que se constitui como o principal financiador das grandes corporações na Pan-Amazônia.

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Pandora fica na Amazônia, no Brasil …

Soma-se a isso um xadrez no campo jurídico que busca fragilizar algumas garantias das populações consideradas tradicionais, como indígenas e quilombolas, entre outras. Para não falar nos bastidores das negociatas típicas de vésperas de pleitos eleitorais. (ou seja, CORRUPÇÃO)

Autorizada a reprodução, citando-se a fonte. Fonte: IHU On-Line/EcoAgência


  • Na Era do Ouro, as pessoas não estavam conscientes de seus governantes.

  • Na Era de Prata, elas os amavam e cantavam.

  • Na Era de Bronze, elas os temiam.

  • E por fim, na Era do Ferro (a atual), elas os desprezavam.

  • Quando os governantes perdem sua confiança, as pessoas (e Deus) perdem sua fé (e o RESPEITO) nos governantes. –  Retirado do Tao Te Ching


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Comissão da Verdade Indígena


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RELATÓRIO FIGUEIREDO: CRIMES CONTINUAM 50 ANOS DEPOIS


Do Instituto Unisinos

Relatório FigueiredFigueiredo-1o: crimes continuam 50 anos depois. Entrevista especial com Elena Guimarães

“Discutir o Relatório Figueiredo ou o relatório da CNV é colocar em pauta a necessidade de efetivar as recomendações encaminhadas pela Comissão Nacional da Verdade ao Estado brasileiro, de afirmar políticas de não repetição e de reparação coletiva”, afirma a pesquisadora.

“O Relatório Figueiredo deixa sua marca por se tratar de uma documentação que identifica e reconhece as violências cometidas contra os índios a partir da década de 1950, em que o Estado brasileiro aparece ora como autor direto de crimes, através de seus agentes, ora indireto, por omissão diante dos ataques de fazendeiros, grileiros, madeireiros, seringalistas, assim como na conivência destes com políticos e poderes locais”, diz Elena Guimarães à IHU On-Line.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a autora da dissertação Relatório Figueiredo: entre tempos, memórias e narrativas, contextualiza os principais momentos da produção e difusão do Relatório, que foi elaborado pelo procurador Jáder Figueiredo Correia entre 1967 e 1968 e ganhou grande destaque na imprensa da época, e comenta a difusão do documento 45 anos depois, quando ele foi resgatado pelas investigações da Comissão Nacional da Verdade – CNV. “Foi importante, neste percurso, refletir sobre os limites da abertura dos arquivos e do acesso aos documentos, assim como da Lei de Anistia para investigarmos e construirmos uma história que não seja a do ponto de vista oficial, do ‘vencedor’”, pontua.

Quase 50 anos depois da elaboração do documento, Elena chama a atenção para a continuidade da “violência contra o índio, o assassinato de indígenas em diversos estados, como ocorre hoje com os Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul; os Tupinambá, no sul da Bahia; os Tenharim, no Amazonas, e tantos outros”. E enfatiza: “Enquanto não houver reconhecimento público, por parte do Estado, e medidas efetivas de reparação, reviveremos práticas do passado no presente”.

Elena Guimarães é mestre em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente, trabalha no Núcleo de Biblioteca e Arquivo do Museu do Índio/Fundação Nacional do Índio – Funai.

Confira a entrevista.

Imagem cedida pela entrevistada

IHU On-Line – Que abordagem sua dissertação faz sobre o Relatório Figueiredo?

Elena Guimarães – Meu objetivo inicial era, a partir do lugar de testemunho da “descoberta” do Relatório Figueiredo nos arquivos do Museu do Índio em 2012, mapear esta documentação, de forma a facilitar o acesso de seu conteúdo aos futuros pesquisadores. Muitas perguntas começaram a surgir no curso da pesquisa. Tenho mais perguntas que respostas. Então, ainda que considere importante o inventário analítico, à medida que avançava na leitura dos autos do processo, pude perceber o jogo de disputas e interesses que formava o cenário tanto da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI de 1963, quanto da Comissão de Inquérito – CI de 1967. E, nos perguntávamos, já que estavam todos empenhados em investigar os crimes contra os índios, o índio teria sido ouvido? E passamos a investigar onde era possível encontrar a voz dos índios na documentação. Procuramos identificar os agentes das denúncias, e as passagens que trazem violações de direitos humanos contra a pessoa do índio, tais como crimes de espancamentos, torturas, cativeiro, estupros, massacres e genocídio, além de esbulho de terras e exploração de minérios.

A dissertação foi construída buscando contextualizar estes dois momentos: o de produção e difusão do Relatório em 1967/68, em plena ditadura militar (considerando o apoio de parcelas do empresariado e da sociedade civil) e de identificação e difusão em 2013/14 no momento em que se desenvolvia o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, tendo em vista não somente o levantamento historiográfico, mas também das ainda frágeis relações entre memória e direitos humanos. Foi importante, neste percurso, refletir sobre os limites da abertura dos arquivos e do acesso aos documentos, assim como da Lei de Anistia, para investigarmos e construirmos uma história que não seja a do ponto de vista oficial, do “vencedor”.

IHU On-Line – Qual é a relevância histórica do Relatório Figueiredo do ponto de vista da memória tanto da história dos indígenas como da atuação do Estado em relação aos índios que vivem no território brasileiro?

Elena Guimarães – Como qualquer documento, é necessário buscarmos o contexto de produção e circulação para termos uma leitura do cenário e dos atores que compõem a história. Ele é uma parte, um indício, e a partir dele, somado a outras fontes, podemos construir uma narrativa. Não existe história neutra, ela será resultado de escolhas e de interpretações. A construção da memória se dá a partir destas peças, que recontextualizadas e ressignificadas contribuem na formação de uma memória coletiva.

O Relatório Figueiredo ganhou destaque, chegando a ser considerado uma das revelações mais importantes daComissão Nacional da Verdade, por se tratar de uma documentação produzida pelo Estado, a partir das investigações da Comissão de Inquérito presidida por um Procurador, a quem devemos o nome do Relatório: Jáder Figueiredo Correia. Todos os crimes de graves violações de direitos humanos apontados no relatório já eram de conhecimento de parte da sociedade. Muitos eram divulgados pela imprensa da época e outros tantos estão ainda na memória dos mais velhos, tanto de indígenas quanto de indigenistas. No entanto, nada era feito para mudar aquelas relações. O Relatório deixa sua marca por se tratar de uma documentação que identifica e reconhece as violências cometidas contra os índios a partir da década de 1950, em que o Estado brasileiro aparece ora como autor direto de crimes, através de seus agentes, ora indireto, por omissão diante dos ataques de fazendeiros, grileiros, madeireiros, seringalistas, assim como na conivência destes com políticos e poderes locais.

O mais trágico é chegarmos à conclusão que tais crimes não são pontuais. É necessária uma Comissão da Verdade Indígena que investigue a fundo a história de resistência destes povos, desde 1500 até a atualidade. Convivemos até hoje com a violência contra o índio, o assassinato de indígenas em diversos estados, como ocorre hoje com os Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul; os Tupinambá, no sul da Bahia; os Tenharim, no Amazonas; e tantos outros, que convivem com o preconceito e discriminação, corroborados pelo tratamento dado pela grande mídia. Por um lado, tivemos de 2012 a 2014 a Comissão Nacional da Verdade investigando as violações de direitos contra os índios, por outro, no mesmo período, é constatado um aumento da violência contra populações indígenas, assim como das ofensivas da bancada ruralista no Congresso, na tentativa de aprovar os projetos de emenda constitucional, assim como do Legislativo, através da decisão do Supremo Tribunal Federal – STF em estipular como marco temporal para ademarcação de terras, aquelas ocupadas em 1988.

Até quando continuaremos testemunhando problemas de usurpação e luta pela terra, com a violência contra os índios aumentando a cada dia? Quando o Estado brasileiro efetivará o reconhecimento destas terras, conforme previsto nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988? Enquanto não houver reconhecimento público, por parte do Estado, e medidas efetivas de reparação, reviveremos práticas do passado no presente.

“É necessária uma Comissão da Verdade Indígena que investigue a fundo a história de resistência destes povos, desde 1500 até a atualidade”

 

IHU On-Line – A partir do Relatório Figueiredo, é possível identificar qual era a política indigenista antes e durante a ditadura militar?

Elena Guimarães – Isso é possível se cruzarmos as informações doRelatório Figueiredo com outras fontes bibliográficas e documentais. A partir destes documentos, temos alguns indícios de como funcionavam os bastidores da política vigente. Os primeiros quatro volumes dos autos do processo são formados por depoimentos prestados à CPI de 1963. Ao lermos atentamente a dinâmica das inquirições, fica nítido que o interesse maior é incriminar o então Diretor do Serviço de Proteção aos Índios – SPI, Moacyr Coelho, e um dos funcionários, Fernando Cruz. Moacyr Coelho, ao assumir a direção do SPI, faz inúmeras críticas ao Ministério da Agricultura, em face do estado de abandono e miséria que encontra nos Postos Indígenas e aldeias. Além disso, ele é autor de denúncias contra deputados interessados em terras arrendadas. O Deputado Edson Garcia, da UDN, é um deles. Entre os arrendatários de terras do sul de Mato Grosso, há diversos parentes do deputado, autor da CPI. E entre as acusações contra Fernando Cruz, a que mais pesa é a de que o funcionário teria armado os índios contra os fazendeiros.

Em 1967, quando é criado o Ministério do Interior, o General Albuquerque Lima assume o novo Ministério. O SPI sai do Ministério da Agricultura e passa ao Ministério do Interior. Entre suas competências, estava a de ocupação do território e de desenvolvimento regional, através de uma série de agências, como Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), Sudeco (Centro-Sul), Sudam (Amazônia). A política implementada seria alinhada com os princípios da Doutrina de Segurança Nacional, conforme idealizado pelo General Golbery Couto, e que nortearia a inteligência militar brasileira. O conceito de “desenvolvimento econômico” estava intrinsecamente ligado com o de segurança, e o objetivo era investir em grandes obras no interior do país, expandindo a industrialização, a rede de transportes, ampliando a abertura de grandes estradas, com o objetivo de “integrar o território”. Ele considerava o território brasileiro vulnerável, devido ao que chama de amplos espaços vazios.

Estas terras, consideradas inaproveitadas e despovoadas, seriam “vias de penetração”, que deveriam ser “tamponadas”. O que isso significa? Os índios são riscados do mapa. E o projeto da abertura de estradas e a construção de hidrelétricas foram responsáveis por verdadeiros genocídios, como o caso dos Waimiri-Atroari, a partir dos anos 1970.

IHU On-Line – Pode explicar de que modo o relatório Figueiredo foi produzido, silenciado e, posteriormente, recuperado? Quais foram as circunstâncias históricas e políticas que envolveram e estiveram por trás desses três momentos?

Elena Guimarães – O Serviço de Proteção aos Índios – SPI, criado em 1910, foi o órgão responsável pela tutela dos índios até 1967, quando foi extinto. Seu acervo documental foi recuperado, em parte, a partir do final da década de 1970, após o incêndio (criminoso) que ocorreu em junho de 1967. Este acervo é importante fonte de pesquisa para identificação da relação do Estado com os povos indígenas. A partir de 2012 chegam ao Museu pesquisadores em busca de documentos que tragam informações sobre este período final do SPI, dos massacres de índios e da política indigenista no contexto da ditadura militar. Eles esbarram em algumas limitações, pois o fundo SPI só abarca documentos produzidos até final de 1967. No caso do Relatório Figueiredo, a documentação produzida pelo Inquérito Administrativo teve início em 1967, mas a conclusão do Inquérito só ocorreu em 1968, após a criação da Funai. A CI começa no período do SPI e termina já na administração da Funai. Com o AI-5, em dezembro de 1968, a documentação, ao que parece, ficou num limbo. O antropólogo Shelton Davis, no seu livro Vítimas do Milagre, de 1978, diz que cientistas e jornalistas estrangeiros vieram ao Brasil em 1969 e, na ocasião, já havia rumores de que a documentação havia se perdido.

Que rumores eram esses? A documentação estava no arquivo do Ministério do Interior, ou no arquivo da Funai? Esta é uma pergunta para a qual ainda não temos uma resposta. Fato é que ela foi oportunamente guardada.

Imagem cedida pela entrevistada

As caixas com os 29 dos 30 volumes do Processo da Comissão de Inquérito vieram em meio a um conjunto maior de documentos transferidos da Funai/BSB para o Museu do Índio em 2008. Esta transferência faz parte de uma política de organização e conservação do acervo SPI, iniciada ainda nos anos 1970, conforme idealizada pelo antropólogo Carlos Araújo Moreira Neto. Em 2000 foi publicada uma portaria da Funai determinando a transferência dos documentos do SPI, que ainda estivessem em alguma administração regional ou Sede, para o Museu do Índio. Cada unidade administrativa fez um trabalho de identificar e separar o que seria documentação do SPI. Foi desta forma que, em 2008, os gestores transferiram um conjunto de 150 caixas da Sede para o Museu do Índio.

Observando o estado de conservação das caixas e invólucros, é possível deduzir que esta documentação não havia sido transportada ou transferida muitas vezes. Pelas referências encontradas nas caixas e pastas, vemos que a documentação estava organizada, havia inclusive recebido uma classificação arquivística. Após a transferência em 2008, foram contratados consultores para trabalharem na indexação do acervo textual. Naquele momento ela foi novamente inventariada, mas devido ao prazo para execução do serviço, recebeu apenas um inventário sumário.

Nele a documentação estava identificada como volumes do processo da Comissão de Inquérito de 1967. Ela ainda não havia sido digitalizada e indexada, pois o projeto de digitalização do acervo teve início somente em 2013. Agora ela já se encontra digitalizada e com a possibilidade de busca por palavras, através do recurso OCR. Isso já representou um grande avanço, pois o pesquisador pode buscar na documentação tudo que diz respeito a determinado povo. Em breve todo o acervo do SPI será indexado na base de dados AtoM, que permite a organização de forma detalhada e contextualizada.

Poderíamos resumir da seguinte forma: a instauração das investigações e produção do Relatório se dá em uma fase doregime militar em que ainda havia uma relativa liberdade, tanto de imprensa quanto de atuação de movimentos políticos e sociais. A publicação do Relatório Figueiredo se deu às vésperas do AI-5, em 1968, quando ocorreu um golpe dentro do golpe, com o fechamento do Congresso, a suspensão de direitos políticos e perseguição a todos que se manifestassem ou depusessem contra o regime. É quando o Relatório Figueiredo “desaparece”, ficando sumido por 45 anos. Com a Lei de Acesso à Informação e a busca pelos documentos produzidos no período da ditadura, no contexto da Comissão Nacional da Verdade, é que os pesquisadores voltam seu olhar para o tema, e passamos a receber a demanda por estes documentos. É quando Marcelo Zelic (Tortura Nunca Mais/SP) pesquisando nos arquivos do Museu do Índio identifica, no final de 2012, entre os documentos recém-incorporados ao acervo, os autos do processo que ganhou o nome de Relatório Figueiredo.

IHU On-Line – Como os jornais da época registraram o caso? É possível identificar uma recusa ou defesa ao Relatório Figueiredo?

Elena Guimarães – A imprensa destaca a importância das investigações como uma iniciativa de moralização do serviço público, cobrando a punição dos acusados, através da cassação de seus cargos, demissão do serviço público, etc. Por se tratar de um Inquérito Administrativo, o destaque dado é em relação aos crimes cometidos por agentes doServiço de Proteção aos Índios. Embora seja possível aferir pelos depoimentos que muitos dos crimes eram cometidos por civis, muitas vezes em conluio com agentes políticos locais, a ideia predominante divulgada pela imprensa é de que o SPI era formado por funcionários corruptos, e estes seriam os responsáveis por todas as mazelas pelas quais passavam os indígenas até aquele momento. Mas os textos e denúncias não chegavam a debater acerca das redes de forças políticas e de interesses por trás de cada ação. Pouco ou nada se falava a respeito das estreitas relações entre deputados e arrendatários de terras, todos com interesses diretos em ocupar as melhores terras e empurrar os índios para pequenas faixas, restringindo seu acesso aos recursos naturais para sua subsistência.

A difusão dos crimes teve ampla repercussão, inclusive na imprensa internacional. O relatório foi divulgado oficialmente pela primeira vez em uma coletiva de imprensa, em março de 1968. As denúncias ganharam proporção de escândalo, por falarem de crimes de tortura, escravidão, massacre de grupos através de açúcar envenenado, roupas contaminadas, entre outros. O Brasil é acusado de genocídio e o Itamaraty é chamado a prestar esclarecimentos sobre o assunto, sob pena de o Estado brasileiro vir a ser alvo de críticas na Comissão Internacional sobre Direitos Humanos que estava para se realizar em Teerã naquele mesmo ano.

IHU On-Line – Qual foi a reação dos militares em relação à divulgação do Relatório na imprensa?

Elena Guimarães – Em 1968, o General Albuquerque Lima publica nota, prestando contas ao Itamaraty, em resposta às acusações da imprensa e, em especial, ao Le Monde, tentando minimizar a dimensão dos crimes. Ele diz que “os pretensos crimes de genocídio não passam de conflitos muito mais violentos na história de outros povos”. E que a mortandade é resultado da “cobiça da civilização”, aliada ao fato de que o índio é “desequipado mental e materialmente para defender sua propriedade”.

E, em 1969, a Comissão Internacional da Cruz Vermelha vem ao Brasil para investigar a situação dos povos indígenas no Brasil. No ano seguinte a comissão visitou duas dúzias de grupos indígenas, ao longo de quatro meses, e publicou um relatório oficial, afirmando que “durante toda a missão não encontramos em nenhum lugar provas de massacres ou sinais de maus-tratos físicos a tribos inteiras ou a pessoas isoladas” e que o governo brasileiro não tem nenhuma responsabilidade por isso.

O Ministro do Interior Costa Cavalcanti vem à imprensa em 1972 rebater as acusações de que havia matança de índios no Brasil. O Ministro declara nos jornais que “recusa formalmente a acusação de que o Governo e o povo brasileiro tenham em qualquer época praticado genocídio contra os nossos índios”. Ele cita o relatório da Cruz Vermelha, entre outras manifestações, para corroborar seu discurso.

Embora a Comissão de Inquérito tenha sido proposta pelo próprio governo da época, por intermédio do Ministério do Interior, a repercussão internacional abalou a imagem do Brasil no exterior. Naquele momento, o Brasil já havia ratificado, na Organização das Nações Unidas, documentos básicos, como a Declaração Universal de Direitos do Homem e a condenação aos crimes de genocídio. Ainda assim, crimes contra a pessoa do índio continuavam a ser praticados, ignorando-se por completo acordos internacionais. Mas o índio ainda continuaria sendo considerado um entrave ao crescimento econômico, tanto pelas elites econômicas quanto por parcelas dos sucessivos governos militares, e este pensamento conduzia às práticas de atrocidades e massacres contra estes povos.

A política de saneamento da administração pública, assim como a promessa de que um novo órgão indigenista traria mudanças na qualidade de vida dos povos indígenas, mostrou-se falaciosa. Crimes continuariam a ocorrer, assim como massacres e extermínios. O mais exemplar e ainda não devidamente esclarecido, como tantos outros, é o massacre dos Waimiri-Atroari, ocorrido a partir de 1968, por ocasião da construção da rodovia Manaus-Boa Vista, aBR-174. O processo de invasão do território para a construção da rodovia que corta o território Kinã (Waimiri-Atroari) foi imposto pelos militares, provocando a morte de 2 mil índios no período da ditadura militar, sobretudo a partir de 1968/1969, concomitantemente às investigações dos crimes contra os índios.

IHU On-Line – Pode relatar alguns casos de violência contra os indígenas, registrados no Relatório Figueiredo, como o Massacre do Paralelo 11, por exemplo?

Elena Guimarães – O Massacre do Paralelo 11 foi como ficou conhecido o massacre dos Cinta-Larga promovido por pistoleiros a mando da firma seringalista Arruda Junqueira & CIA, em 1963. Segundo depoimento do funcionárioRamis Bucair, um bando de pistoleiros chefiado por Chico Luiz metralhou um grupo de índios Cinta-Larga e, ao encontrarem uma índia sobrevivente, na companhia de seu filho de seis anos, mataram o menino com um tiro na cabeça. Depois penduraram a índia pelos pés, com as pernas abertas, e partiram-na com um golpe de facão, do púbis à cabeça. Esta cena chocante foi divulgada nos jornais da época e é o único caso deste tipo de violência em que temos registro fotográfico. Bucair entregou à Comissão de Inquérito um rolo de áudio da confissão de um dos bandidos,Ataíde Pereira dos Santos. Segundo ele, até então o autor do crime continuava impune, possivelmente devido ao prestígio de seus protetores.

Há inúmeros outros casos de violência, como o envio de meninas e meninos para trabalharem “de castigo” nas fazendas vizinhas, à revelia dos pais; espancamentos; torturas no instrumento chamado “tronco”; abusos sexuais; além da matança de grupos inteiros, através de envenenamento e inoculação de vírus através de roupas contaminadas. Não menos grave, o esbulho de terras, através de contratos de arrendamento irregulares e invasão de terras.

Os envolvidos em esbulhos aprecem com nome e sobrenome. O funcionário Hélio Bucker traz um dos depoimentos mais contundentes. Em sua fala a respeito do esbulho de terra dos Bororo, em Mato Grosso, ele diz que começa com o Governador Fernando Correa da Costa, filho do ex-governador Antonio Correa da Costa, ao conceder aos colonos uma área de 75 mil hectares (ha), enquanto a área indígena era de 65 mil ha. Segundo Bucker, estas terras foram concedidas a políticos, parentes e até juízes. Ele cita alguns nomes de beneficiários da espoliação de terras dos Bororos: Manuel José de Arruda e João Moreira de Barros — ex-ministros do Tribunal de Contas do Estado; Gastão de Matos Muller — suplente de senador; Ranulfo Marques Leal — deputado, chefe do gabinete do atual governador,Nilo Ponce de Arruda Filho; Osvaldo Moreira Figueiredo — oficial do exército; vários membros da família Leal, parentes do atual Secretário de Justiça do Estado, Dr. Leal de Queirós. Ele fala que inúmeros “figurões da política”, da sociedade e da alta finança mato-grossense “figuram nessa negociata e podem ser identificados através da publicação dos nomes de seus parentes ou dos seus próprios no Diário Oficial do estado de 15 de março de 1966”. Ele cita ainda o envolvimento do grupo econômico de João D’Escócia Sejopolis, do Senador Filinto Muller e do Senador Ney Braga.

IHU On-Line – Quais são as diferentes narrativas que compõem o Relatório Figueiredo e como elas se relacionam?

Elena Guimarães – Sempre gosto de lembrar que o que hoje chamamos de Relatório Figueiredo era, originalmente, o Processo nº 4.483/68 do Inquérito Administrativo instaurado para investigar as irregularidades do SPI. No decorrer das investigações, o presidente da Comissão de Inquérito, Jáder Figueiredo Correia, escreveu um relatório, de 68 páginas, apresentando a conclusão das investigações até aquele momento. Este relatório foi divulgado em março de 1968 e publicado em Diário Oficial em setembro do mesmo ano. Então, quando as pessoas se referiam aos resultados da Comissão, falavam do Relatório Figueiredo. Em 2012/2013, quando esta documentação é identificada por Zelicentre os documentos transferidos de Brasília para o Museu do Índio em 2008, todo o conjunto documental passa a ser chamado de Relatório Figueiredo.

Digo isso para esclarecer que o relatório conclusivo é a narrativa do próprio Jáder. Mas os autos do processo são formados por depoimentos e inquirições, tomados em 1963 e 1967. Os de 1963 são depoimentos prestados à CPIinstaurada pela Câmara dos Deputados naquele ano. E os de 1967 são os termos de inquirição tomados no decorrer das investigações da Comissão presidida por Jáder. Na CPI de 1963 são ouvidos alguns funcionários do SPI e o diretor Moacyr Ribeiro Coelho, além dos deputados que integram a Comissão. E na CI de 1967, além de funcionários, prestadores de serviço e diretores, há também a presença de alguns indígenas Kaingang, ainda que seja pequena a sua participação. As falas dos funcionários ora se complementam, ora se contradizem. Mas, o que se apreende do conjunto das narrativas é que, ainda que não se tenha como aferir, entre acusados e acusadores, quem é efetivamente o autor de alguns dos crimes, fato é que tais crimes ocorreram, pois eles estão vivos na memória destes povos diretamente afetados. Daí a importância em complementar a pesquisa da documentação textual com narrativas atuais, a partir da história oral e da memória destes povos.

 

“A violência contra os povos indígenas sempre existiu, e perdura até a atualidade”

IHU On-Line – Como o Relatório Figueiredo pode contribuir para a discussão indígena atualmente?

Elena Guimarães – Como disse antes, enquanto pesquisamos a respeito dos crimes contra os índios, seja no período investigado pela Comissão Nacional da Verdade, seja nos anos anteriores à ditadura, seja no Império, seja na atualidade, constatamos que aviolência contra os povos indígenas sempre existiu, e perdura até a atualidade. Por um lado, foi possível abrir um espaço na CNV para iniciar uma investigação sobre o tema, o que já representa algum avanço, mas há muito ainda a ser investigado.

A CNV investigou casos de apenas 10 etnias, ou seja, menos de 5% do total de povos indígenas que temos no Brasil — o Censo de 2010 reconhece um total de 305 etnias e 69 ocorrências de índios ainda não contatados. O número parcial de indígenas afetados pela ditadura é de 8.350 e a própria Comissão da Verdade diz que este número deve ser muito maior. Somente no Relatório Figueiredo, mais de 13 grupos são mencionados, sendo que a Comissão de Inquérito não percorreu todo o território.

Recentemente participei do Seminário História do Ponto de Vista Indígena, realizado pelo Curso de Formação Intercultural de Professores, na Faculdade de Educação da UFMG. Eles trouxeram lideranças Pataxó, Xacriabá, Guarani, Aikewara, entre outras, para apresentar seus depoimentos a respeito da violação de direitos no período investigado pela CNV. Fui questionada por alguns se seus povos também apareciam no Relatório Figueiredo. Infelizmente, tive que dizer não para alguns. Infelizmente, porque na memória destes povos, existem as violências sofridas, mas nem todas estão documentadas no papel. E, enquanto estávamos ali estudando os crimes cometidos no passado, estávamos vivendo simultaneamente crimes e violações cometidos no presente. E a fala recorrente entre os alunos era a de que para os índios até hoje não chegou esta tal de democracia, e o que eles querem é que se faça cumprir a lei, conforme consta na Constituição Federal. Mas, em vez disso, o que vemos hoje é um Legislativo e Judiciário querendo derrubar direitos conquistados, e a omissão do poder Executivo. Portanto, discutir o Relatório Figueiredo ou o relatório da CNV, é colocar em pauta a necessidade de efetivar as recomendações encaminhadas pela Comissão Nacional da Verdade ao Estado brasileiro, de afirmar políticas de não repetição e de reparação coletiva. E o único caminho para isso é a efetiva demarcação das terras indígenas.

Influência da cultura indígena em nossa vida vai de nomes à medicina


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Terena 8

Contribuições passam também por hábitos de alimentação e artesanato

 
Globo Ecologia: Floresta e cultura (Foto: Divulgação/ Chang Whan)
Torração de farinha: alimento descoberto pelos
índios que faz parte de nossa cultura
(Foto: Chang Whan / Divulgação)

É provável que você conheça alguém chamado Ubiratan ou Jacira. Pode ser também Iracema, Tainá, Cauã ou Jandira. Quem vive ou já visitou o Rio de Janeiro, com certeza ouviu falar em Tijuca, Itaipu, Ipanema, Jacarépaguá, Itapeba, Pavuna e/ou Maracanã. Em São Paulo, quem não conhece Itaim, Itaquaquecetuba, Butantã, Piracicaba, Jacareí e Jundiaí? Não importa onde se viva, qualquer brasileiro já teve contato com uma infinidade de palavras de origem indígena, sobretudo da língua tupi-guarani (união entre as tribos tupinambá e guarani), como carioca, jacaré, jabuti, arara, igarapé, capim, guri, caju, maracujá, abacaxi, canoa, pipoca e pereba.

Globo Ecologia: Floresta e cultura (Foto: Divulgação/ Márcio Ferreira)
Bolsa karajá: artesanato da tribo indígena
(Foto: Márcio Ferreira / Divulgação)

Mas não foi só na língua portuguesa que tivemos influência indígena. Sua herança e contribuição para a formação da cultura brasileira vai além: passa da comida à forma como nos curamos de doenças. Os índios, através de sua forte ligação com a floresta, descobriram nela uma variedade de alimentos, como a mandioca (e suas variações como a farinha, o pirão, a tapioca, o beiju e o mingau), o caju e o guaraná, utilizados até hoje em nossa alimentação. Esse conhecimento das populações indígenas em relação às espécies nativas é fruto de milhares de anos de conhecimento da floresta. Lá, eles experimentaram o cultivo de centenas de espécies como o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o tomate, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o abacaxi, o mamão, a erva-mate e o guaraná.

Globo Ecologia: Floresta e cultura (Foto: Divulgação/ Mariana Maia)
Cerâmica figurativa: artesanato indigena
(Foto: Mariana Maia / Divulgação)

Outro benefício que herdamos da intensa relação dos índios e a floresta é em relação às plantas e ervas medicinais. O conhecimento da flora e das propriedades das plantas os fez utilizá-las nos tratamento de doenças. Por exemplo, a alfavaca que tem função antigripal, diurética e hipotensora, ou o boldo que é digestivo, antitóxico, combate a prisão de ventre e pode ser usado também nas febres intermitentes (que cessam e voltam logo) são descobertas dos índios utilizadas no nosso dia a dia.

O artesanato também não fica de fora. Bolsas trançadas com fios e fibras, enfeites e ornamentos com penas, sementes e escamas de peixe são utilizados em diversas regiões do país, que sequer têm proximidade com uma aldeia indígena.

Globo Ecologia: Floresta e cultura (Foto: Divulgação/ Chang Whan)
Confecção de canoa em tribo indígena
(Foto: Chang Whan / Divulgação)

Segundo Chang Whan, pesquisadora e curadora do Museu do Índio do Rio de Janeiro, embora nós tenhamos o costume de separar a cultura indígena da cultura brasileira, essa dissociação não está correta. “A cultura brasileira resulta da conjunção de muitas influências culturais, inclusive temos todas essas contribuições dos índios, com a influência na toponímia (nome dos lugares), na onomástica (nomes próprios), na culinária e no tratamento de saúde utilizando as ervas medicinais. Portanto, não devemos fazer essa dissociação”, explica.

​Ayahuasca: Da Magia à Possível Cura para Alcoolismo e Depressão


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ESCRITO POR PABLO NOGUEIRA

Jorge* está na faixa dos 60 anos, trabalha na área empresarial, tem cabelos grisalhos, filhos casados e netos crescidos. As pessoas com quem convive no ambiente corporativo não imaginam que ele participa de rituais religiosos que usam a ayahuasca, o chá alterador de consciência também conhecido pelos nomes de Chá de Santo Daime e Vegetal. Graças à bebida mística, Jorge se tornou abstêmio radical. Uma grande mudança para alguém que, na juventude, era um bebedor de uísque que chegava a comprar várias caixas do destilado de uma vez. “No dia em que compreendi o que era o álcool, abri as caixas e comecei a esvaziar as garrafas na pia da cozinha. Minha esposa ficou chocada”, me contou.

Fanatismo religioso? Talvez não. Sem aderir a nenhuma crença em particular, o cientista americano Robert Rhatigan também recorreu ao chá para superar um problema de alcoolismo. Em 2010, após uma década de tratamentos frustrados, Rhatigan embarcou para a Amazônia peruana, onde participou de quatro rituais conduzidos por um xamã. Numa palestra realizada ano passado, num evento inspirado no TED, ele conta como, sob o efeito da bebida, “viu” os “vários componentes da mente flutuando no espaço, como se fossem as peças de um quebra-cabeça”. A experiência durou horas, embalada pelos cânticos do xamã e incluiu fortes vômitos. Ao final da cerimônia, ele “enxergou” as peças retornando para dentro de sua cabeça. Aquela que correspondia à sua dependência do álcool não se encaixava mais. Ali soube que estava curado. “Minha transformação ainda não é compreendida pelo modelo ocidental de medicina”, diz.

Mas é provável que o obscurantismo acerca do chá dure pouco tempo. Relatos como os de Jorge e Rhatigan instigam uma nova geração de psiquiatras, psicólogos e cientistas sociais a investigar os benefícios do chá para o tratamento de problemas de saúde mental.

Altar de um ritual com ayahuasca. Crédito: Paul Hessell/ Flickr

A investigação científica das substâncias capazes de alterar fortemente a consciência humana começou com a descoberta do LSD em 1943. Conheceu um breve período de glória entre as décadas de 50 e 60, antes de ser atropelada pela proibição do LSD em todo o mundo. À época, um dos pesquisadores envolvidos, o psiquiatra inglês Humphry Osmond, batizou as substâncias de “psicodélicas”, palavra derivada do grego que significa “o que revela a mente”.

Desde o inicio do século, a ciência psicodélica, como é chamada por alguns, experimentou um renascimento. Hoje substâncias poderosamente psicoativas, como a psilocibina, a ibogaína e o próprio LSD estão sendo analisadas em hospitais e institutos de pesquisa por todo o globo.

“Na área dos estudos com a ayahuasca, o Brasil é hoje um dos países na vanguarda da pesquisa”, diz Luis Fernando Tófoli, professor do departamento de psicologia médica e psiquiatria da Unicamp e coordenador do Laboratório de Estudos interdisciplinares de psicoativos.

Neste ano, um estudo produzido por brasileiros foi noticiado na prestigiada revista Nature. O trabalho avaliou os efeitos da bebida sobre os sintomas da depressão em dois homens e quatro mulheres, com graus que variavam entre leve e severo. Os participantes ingeriram ayahuasca uma única vez em doses entre 120ml e 200ml preparadas por uma igreja do Santo Daime. Nos momentos seguintes tiveram sua saúde mental monitorada por meio de três diferentes tipos de questionários aplicados em oito ocasiões – o primeira 40 minutos após a ingestão da bebida e o último três semanas depois.

O cipó banisteriopsis caapi, uma das plantas usadas para preparar o chá. Crédito: Paul Hessell/ Flickr

Os resultados mostraram que houve melhora em todos os participantes, independentemente do grau de depressão que apresentavam. De acordo com um dos questionários, no dia seguinte ao experimento, houve umaREDUÇÃO de 62% nos sintomas. Uma semana depois, o efeito continuava a se ampliar, chegando a 72%. Segundo outro questionário, três semanas depois da ingestão da dose a diminuição de sintomas como tristeza, dificuldades de concentração, fantasias suicidas e pensamento negativo havia chegado a 82%. Não foram detectados efeitos colaterais, embora metade dos sujeitos tenha vomitado quando sob efeito do chá.

Os resultados impressionaram os pesquisadores. “Observamos efeitos antidepressivos nas primeiras horas após a administração de ayahuasca, e eles permaneceram significativos por duas a três semanas”, disseram, por e-mail, Flávia de Lima Osório e Rafael Guimarães dos Santos, dois dos autores. Ela é docente do departamento de neurociências e ciências do comportamento da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, e ele é pós-doutorando no mesmo departamento. “Além disso, a ayahuasca foi bem tolerada pelos pacientes. A maioria descreveu a experiência como positiva, mesmo com vômitos e náuseas.”

Os resultados com os bebedores de primeira viagem podem ser boa notícia para uma área que precisa de tratamentos mais rápidos. “Os antidepressivos disponíveis tardam algumas semanas para produzir o efeito terapêutico, além de produzirem efeitos adversos significativos, como disfunções sexuais e aumento de peso”, diz Flávia. “Muitos pacientes não obtêm uma resposta terapêutica eficaz. São necessários novos fármacos que atuam rapidamente com maior eficácia e menos efeitos adversos.”

A diminuição de sintomas como tristeza e fantasias suicidas chegou a 82%. Não foram detectados efeitos colaterais, embora metade dos sujeitos tenha vomitado quando estava sob efeito do chá.

Tófoli concorda. “Os antidepressivos lançados mais recentemente fazem o mesmo que os anteriores já faziam. Não foram lançadas novas substancias capazes de agir em outros receptores. A psicofarmacologia não tem sido capaz de dar essa resposta”, diz.

A combinação de sede por boas notícias com o frisson associado à alteração da consciência em laboratório pode ajudar a entender o hype que se sucedeu à divulgação da pesquisa. Depois de virar notícia na Nature, a pesquisa foi destaque nos sites de alguns dos principais veículos do mundo, do Huffington Post à Scientific American. Uma repercussão que deixou os próprios pesquisadores cautelosos. Flávia, por exemplo, faz questão de darENTREVISTA apenas por e-mail “porque já teve problemas em matérias anteriores”. Também reitera que nada está demonstrado. “Este é um estudo-piloto, com poucos voluntários e sem desenho duplo cego controlado com placebo. Nos estudos com antidepressivos em geral, o efeito placebo pode ser bastante significativo. Logo, não podemos ainda afirmar se a ayahuasca realmente possui efeitos antidepressivos, e muito menos que possa curar a depressão”, escreve.

Uma nova onda de procura pela ayahuasca pode acontecer num futuro bem próximo. Em Natal, o pesquisador Dráulio de Barros Araújo, do Instituto do Cérebro da UFRN, coordena um estudo com o uso de placebo para comparar os efeitos da bebida num grupo de 80 indivíduos, a metade delas composta por pessoas com diagnóstico de depressão. Além de acompanhamento clínico, os sujeitos serão submetidos a exames de eletroencefalografia de alta definição. “Nunca foi feito um estudo com esta metodologia mais consolidada para avaliar os potenciais benefícios da ayahuasca para depressão”, diz Tófoli, um dos participantes. “Se encontrarmos resultados positivos, tem tudo para causar um certo impacto.”

A preparação do chá. Crédito: Paul Hessell/ Flickr

Outro estudo, publicado este ano na revista cientifica Physiology and Behaviour, analisou os efeitos da ayahuasca sobre o organismo de camundongos dependentes de álcool. O trabalho envolveu os pesquisadores Alexandre Justo de Oliveira-Lima, que é professor de farmacologia da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, Eduardo Marinho, da mesma universidade e Laís Berro, da Universidade Federal de São Paulo, além de participantes da Universidade Brás Cubas e do Instituto de Criminalística de São Paulo.

A pesquisa com modelos animais é uma etapa do desenvolvimento de novas drogas e, também, um recurso para compreender as alterações orgânicas causadas pelo processo de adição. O uso problemático de drogas, tanto em animais quanto em humanos, causa alterações nas regiões cerebrais conhecidas como área tegmental ventral (ATV) e núcleo accumbens, o nosso sistema de recompensa. As substâncias ingeridas pelo adicto alteram as quantidades do neurotransmissor dopamina presentes nesta região, o que causa uma sensação de prazer e euforia e, no nível comportamental, vão motivar o comportamento de busca por mais droga e mais prazer.

Oliveira-Lima já tinha experiência em fazer estudos para analisar a ação de drogas como anti-psicóticos no combate ao vício em álcool. Os comentários sobre os possíveis benefícios do chá chamaram sua atenção. “Resolvemos fazer esta pesquisa porque há esta ambivalência quanto ao que causa os benefícios, se é a experiência religiosa ou a ação direta do chá”, diz Lima.

O ritual acompanhado por um xamã. Crédito: Paul Hessell/ Flickr

O estudo usou a técnica denominada sensibilização comportamental. Na prática, consiste em injetar doses de álcool etílico nos camundongos cobaias, de forma a induzir as alterações em seus cérebros e, por tabela, em seus comportamentos. Os exames são feitos a partir da observação da atividade motora dos animais. Como o álcool em doses não muito elevadas tem ação estimulante, as cobaias tendem a caminhar distâncias maiores quando estão sob seus efeitos. A constante repetição das doses aprofunda as alterações cerebrais, e os camundongos caminham distâncias maiores.

Houve duas fases experimentais. Na primeira, os animais foram divididos em diferentes grupos. Um deles recebeu apenas doses de solução salina, sem efeito no organismo e que serviu como placebo. “Estamos simulando uma situação em que uma pessoa vai a um ritual, ingere o chá e depois bebe álcool”, explica Lima. Outros receberam doses de ayahuasca em diferentes concentrações e, depois, injeções de álcool. Um recebeu apenas injeções de álcool, sempre com a mesma dose.

Após 10 dias, comparou-se a frequência de deslocamento dos animais. Os resultados mostraram que aqueles que receberam a ayahuasca caminharam até cerca de 50% menos do que os que só ingeriram álcool. Ou seja: os animais que não receberam o chá foram sensibilizados pelo álcool. Nos outros, o chá foi capaz de impedir que as modificações no cérebro se aprofundassem, ocasionando uma resposta comportamental mais branda.

Depois veio o segundo experimento. Mais uma vez, os animais foram divididos em diversos grupos. Um recebeu apenas injeções de solução salina, para servir como controle. Os demais foram sensibilizados para o álcool, isto é, tornaram-se “dependentes”. Em seguida, foram aplicadas injeções de ayahuasca durante 8 dias consecutivos, na tentativa de reverter a sensibilização. Depois de 7 dias, foram dadas novas injeções de álcool e comparadas as frequências de deslocamento entre os grupos. O gráfico mostrou que tanto os animais que estavam sentindo os efeitos do álcool pela primeira vez quanto os que se submeteram ao processo de desensibilização com o chá apresentaram exatamente o mesmo comportamento. Em outras palavras: a “dependência” foi revertida.

Oliveira-Lima explica que, pensando numa transposição para o que poderia acontecer em humanos, é como se um indivíduo dependente de álcool fosse internado numa clínica e lá tratado com ayahuasca num período de alguns meses. “Com a reversão da sensibilização, essa pessoa estaria menos exposta a sentir vontade de voltar a beber. E mesmo que experimentasse uma recaída, os efeitos seriam mais brandos no primeiro momento”, diz.

Com o avanço no conhecimento sobre os mecanismos neuroquímicos da ayahuasca, abre-se caminho para a eventual produção de medicamentos que sejam baseados em seus princípios ativos. Na teoria, os doentes poderiam usufruir dos benefícios neuroquímicos destas substâncias sem precisar passar horas experimentando o estado de consciência alterada – e, talvez, nem mesmo as sensações de náusea e os vômitos (aliás, vale apontar que os ratos não vomitaram no estudo).

“Hoje são poucas as opções de medicamentos com boa eficácia para tratamento de alcoolismo. A partir de estudos como esses, as companhias farmacêuticas podem se dedicar a desenvolver novos produtos. Acredito que a ayahuasca vai ser o grande filão para o tratamento de dependência nas próximas décadas”, diz Lima.

O próximo passo será repetir o processo de sensibilização e dessensibilização e, a seguir, retirar os cérebros dos camundongos para analisar as modificações. No entanto, o recente corte de verbas no Programa Nacional de Pós-graduação, coordenado pela CAPES, poderá prejudicar estas e inúmeras outras pesquisas. “Embora as bolsas tenham sido preservadas, os cortes chegam a 75% de verbas que custeiam os meios necessários para a pesquisa. Uma linha para comprar equipamento, por exemplo, foi cancelada para este ano. Isto vai se refletir negativamente na ciência brasileira nos próximos cinco anos”, diz.

Cadeiras usadas no ritual. Crédito: Paul Hessell/ Flickr

Se hoje o Brasil abriga alguns dos principais grupos de pesquisa em atividade nesta área, é porque o país começou a desenvolver, ainda nos anos 80, uma pioneira legislação, em termos mundiais, que regulamentou o uso religioso do chá. “Somos gratos aos grupos religiosos por terem conquistado as condições que hoje nos permitem fazer pesquisa. E é importante enfatizar que não temos nenhum interesse em ‘sequestrar’ a bebida para o uso médico”, diz Tófoli.

Além de novos tratamentos, outro benefício que a pesquisa psicodélica poderá proporcionar é a adoção de posições mais objetivas numa área onde as polêmicas ainda são fortes. “Há quem rejeite qualquer possibilidade de uso terapêutico da ayahuasca porque é psicoativa e teria riscos associados. E outros acreditam que a ayahuasca cura tudo, o que é claramente um exagero.” Segundo o psiquiatra, os estudos realizados até agora revelam que não é todo mundo que pode usar ayahuasca. “Há pessoas que podem ter surtos psicóticos”, pondera.

Quanto a questão dos mecanismos pelos quais o chá pode combater doenças mentais, o debate ainda está longe de chegar a um consenso. Quando um indivíduo vai a um psiquiatra para pedir uma prescrição, na verdade está se envolvendo numa cadeia terapêutica que inclui diversos fatores, como a simbologia de se tomar um remédio, o contato com a pessoa que lhe dá a prescrição, o efeito placebo… Enfim, são diversos os componentes que podem causar ou reforçar efeitos emocionais. Se isso acontece com medicamentos que se pode obter na farmácia, o que se dirá das substâncias alteradoras da consciência?

“A ingestão de ayahuasca parece ser causadora de autorreflexão”, pondera Tófoli. “Muitas pessoas decidem mudar coisas em sua vida durante a experiência. Há quem decida virar vegetariano, por exemplo. Como dizer se o que produz os benefícios é a química ou aquilo que a pessoa experimenta durante a alteração da consciência? Não dá para afirmar.”

Basta lembrar da experiência de Robert Rhatigan, o cientista americano que só conseguiu curar sua dependência depois “vê-la” de fora de sua própria mente, para imaginar que pode haver mais coisas envolvidas do que apenas a neuroquímica.

Mas espera aí. A experiência com os modelos animais não demonstra que se trata de uma questão essencialmente fisiológica, que independe do que acontece na consciência de quem está experimentando a ayahuasca?

“E quem disse que os camundongos não tem consciência?”, respondeu Tófoli.

Uma resposta psicodélica. E, ao mesmo tempo, bastante relevante para evidenciar importantes questões que ainda estamos longe de compreender minimamente.

*Jorge pediu que seu verdadeiro nome fosse mantido em sigilo.

Parto das índias: como as mulheres da etnia Munduruku dão à luz



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Índios da etnia munduruku chegam à capital federal para reunião com representantes do governo

Por Adriana Franzin/EBC

A pesquisadora Raquel Paiva Dias Scopel viveu a experiência de habitar na Terra Indígena Kwatá-Laranjal, Município de Borba, Amazonas e colher relatos de indígenas da etnia Munduruku sobre o tema. Sua tese “A cosmopolítica da gestação, parto e pós-parto: práticas de autoatenção e processo de medicalização entre os índios Munduruku”, foi apresentada na Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do grau de doutora em Antropologia Social.

Do extenso e profundo estudo destacam-se algumas características principais dessas crenças, resumidas a seguir.

Menstruação

Na cultura Munduruku, o sangue menstrual é um forte atrativo para os “botos” (seres místicos que provocam doenças, infortúnios e até a morte). Durante o período da menstruação, as mulheres cumprem um resguardo que consiste em se banhar dentro de casa (em vez de ir ao rio, como os outros) e não ir até as fontes de água, como o rio e a cacimba, para evitar o risco de ter uma “gravidez de bicho” provocada pelo boto ou por animais, como cobra ou peixe (em que a concepção acontece em sonhos) e que levam ao aborto e óbito do bebê ou da mãe.

Concepção e gestação

Eles acreditam que o bebê é formado a partir da junção do sêmen do pai ao sangue menstrual da mãe, por isso, evitam ter relações nesse período como método contraceptivo. (As mulheres também fazem uso de remédios caseiros para reduzir o fluxo menstrual e espaçar as gestações) Durante o período da gestação, enquanto as mulheres engordam e trabalham normalmente, é comum que alguns homens sofram o “abalo de criança”, que causa fraqueza, abatimento, prostração, perda de peso, enjoo e desejo. Isso porque creem que o bebê “puxa” as energias do pai, que é encorajado por todos a não se deixar entregar, mas faz com que muitos passem dias deitados nas redes.

Além da participação efetiva de ambos os pais na concepção e no desenvolvimento para que o bebê cresça também é necessária a participação de Karusakaibu (citado nos mitos como criador dos Munduruku, dos animais de caça e dos artefatos culturais), aceito também com os nomes de Deus ou Jesus. Ele é responsável pela formação do corpo humano, com todos os órgãos internos e externos.

Parto

Do ponto de vista dos Munduruku, as atividades exercidas pelos pais ao longo da gestação são responsáveis por facilitar ou dificultar o trabalho de parto. A mulher é aconselhada a não contar ao marido sobre o início do trabalho de parto, porque isso pode fazer com que seja mais doloroso e demorado. Só avisam quando as contrações estão fortes.

O parto é um evento íntimo e familiar entre os Munduruku. Apesar de contar com a opção de parir em unidades hospitalares, do polo base de saúde Laranjal ou do Sistema Único de Saúde na cidade vizinha, Nova Olinda do Norte, muitas mulheres que vivem na Terra Indígena Kwatá-Laranjal preferem ter os filhos em casa, onde podem, inclusive, ter o apoio de médicos e técnicos de saúde do polo.

As que preferem parir em casa contam principalmente com o apoio de uma mulher que tem o dom de “pegar barriga”. Essas figuras são geralmente parentes próximas, senhoras que já tiveram filhos, com experiências em parto, conhecimentos de ervas, chás, banhos e rezas. Por meio da apalpação da barriga conseguem saber se a gravidez é “de gente” ou “de bicho”. Ela também sabe determinar o sexo da criança pela observação da consistência e dos movimentos do feto. Ao longo da gestação essa mulher faz o acompanhamento para verificar se o bebê está na posição certa para nascer. Se não estiver, pode ser encaminhada para o hospital.

Além de “pegar barriga”, elas sabem como fechar a “mãe do corpo” depois do parto e colocá-lo no lugar, quando se desloca, por meio de massagens no ventre. A “mãe de corpo”, segundo o conhecimento munduruku, fica localizado abaixo do umbigo da mulher. Não é equivalente ao útero nem à placenta, mas é entendido como “a força da mulher” ou “a saúde da mulher”, segundo depoimentos colhidos pela pesquisadora. Quando “sai do lugar” pode causar mal-estar uma série de doenças.

Índio munduruku

Durante a gestação e o parto a gestante é instruída por essa mulher a tomar banhos de ervas específicas para abreviar o trabalho de parto e diminuir a dor.

A mulher tem liberdade de posições: de joelhos, com as mãos apoiadas na rede; parcialmente deitada ou sentada no chão, com alguém segurando pelas costas com os braços ao redor da parturiente; ou “sentada” em um banquinho (um banco de altura pequena, talvez, uns 10 cm do chão), usado especialmente para o parto, com alguém apoiando pelas costas, preferência entre as mulheres Munduruku.

Quando o bebê nasce é amparado pela parteira, que também tem a função de preparar o local de parto, cortar o cordão umbilical e fazer o asseio da mulher no pós-parto.

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Índios Paumari, o povo das águas


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 Revoada

Adriano Gambarini 

O dom de “caminhar” sobre as águas.

Crédito: Adriano Gambarini/OPAN

Imagine-se numa canoa de não mais de 3 m de comprimento e 50 cm de largura, na altura da lamina d’agua, onde qualquer pequeno movimento pode alagar esta pequena embarcação. Agora, fique em pé na proa da canoa com a leveza de uma garça, segure um arpão de 4 m de comprimento e comece a olhar fixamente para a superfície espelhada do lago que reflete um calor lancinante. E nos próximos 20 a 30 minutos tente acompanhar o movimento sutil de um grande peixe que habita aquelas águas, que surgirá numa fração de segundo e sumirá novamente como por encanto. Nesta fração de segundo você terá que decifrar qual foi a direção que este grande peixe tomou e lançar o arpão num movimento certeiro. Se isto der certo, você terá que trazer à tona um pirarucu que certamente pesará pelo menos 80 quilos, colocar sozinho dentro da pequena canoa e remar calmamente como se tudo isto fosse a atividade mais simples de realizar.

Pois bem, os índios Paumari fazem isto como ninguém, e eu tive o privilégio de documentar sua cultura e tradição. Conhecido como “Povo das Águas”, habitam, entre outras, as terras à margem do Rio Tapauá, afluente do Rio Purus, no sul do Estado do Amazonas. E foi justamente nestas terras que deram inicio, no ano passado, na pesca manejada do Pirarucu. Tal trabalho faz parte de uma iniciativa apoiada pelo projeto Raízes do Purus, realizado pela ONG Operação Amazônia Nativa (OPAN) e com o patrocínio da Petrobras. Apesar do manejo do Pirarucu ser uma atividade já realizada em diversas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) na Amazônia, trata-se da primeira experiência que se tem notícia realizada em terras indígenas na região do Rio Purus.

Até pouco mais de cinco anos, os Paumari não consideravam tratar dos recursos naturais de suas terras, muito menos de forma controlada. Arrendavam os lagos para barcos pesqueiros que praticavam uma pesca predatória. A elaboração do Plano de Gestão e sua implementação possibilitaram aos índios abolirem estas práticas e bastaram alguns anos de conservação e vigilância nos lagos, onde apenas a pesca para subsistência era permitida, a população do pirarucu e de quelônios aumentou consideravelmente. Esta constatação está mudando a forma como os Paumari vêm suas terras e seus bens naturais. Estão percebendo que conservá-las só reverte beneficamente para seu próprio povo. Afinal, neste segundo ano consecutivo, conseguiram aumentar o estoque de pirarucus nos lagos e ainda pescar para comércio, pouco mais de 80 pirarucus que alcançaram quase 5 mil quilos totais e lhes renderam um bom capital. A venda, autorizada pelo Ibama, com anuência da Funai, já estava previamente acordada com a Cooperativa Mista Agroextrativista Sardinha (COOPMAS), que manteve um barco com compartimento frigorífico ao lado de uma base flutuante, onde os próprios Paumari limpavam e tratavam os peixes. Ou seja, um sistema fechado de pesca, limpeza e congelamento extremamente eficaz, onde foram seguidos elevados padrões de higiene e qualidade. De acordo com o coordenador do Programa Amazonas da OPAN, Gustavo Silveira, o manejo do pirarucu está sendo fundamental para a gestão territorial das terras indígenas Paumari.

13@AdrianoGambarini OPANRetirada de um pirarucu. Crédito: Adriano Gambarini/OPAN

Pescar um pirarucu é sinônimo de paciência e interpretação de sinais, e os Paumari dominam com sapiência esta atividade tradicional passada ao longo das gerações. Tudo gira em observar na superfície da água algum pirarucu que suba rapidamente para respirar. Após isto, dá-se início uma longa e silenciosa espera até a próxima ‘boiada’, quando o pescador tem que arpoar o peixe. Uma técnica secular aperfeiçoada com o uso de grandes redes, que restringem as áreas do lago e assim otimizam a pescaria, já que o manejo tem um tempo determinado para início e fim.

No entanto, as técnicas relativas ao manejo controlado, com contagem sistematizada dos peixes e a posterior etapa de limpeza e resfriamento, foram ensinados aos Paumari pelos técnicos do Instituto Piagaçu e do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que há anos realizam esta metodologia nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus e Mamirauá, respectivamente. “Frente aos Paumari, nós atuamos no tocante ao acompanhamento da recuperação dos estoques (além da análise dos resultados das contagens anuais dos lagos da área de manejo), assim como conduzimos as discussões que são realizadas para a estruturação organizacional e gerencial do povo Paumari no processo de manejo”, explica Felipe Rossoni, coordenador do Programa de Conservação e Manejo de Recursos Pesqueiros do Instituto Piagaçu.

Para mim, foi uma experiência mais do que memorável. Há muitos anos meu trabalho como fotógrafo transita entre a ciência pura, acompanhando pesquisadores nos confins amazônicos, e a vivencia com comunidades ribeirinhas e povos indígenas, aprendendo com estas pessoas os sinais sutis da floresta, experimentando uma sabedoria sem fim, sentindo uma simplicidade que toca o coração da alma.

 Veja mais fotos da expedição

Saiba Mais
Operação Amazônia Nativa – OPAN

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Ameaçados de ter sua terra ancestral alagada e traídos pela Funai


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''A honra não se herda.

 Eliane Brum 

O segundo mandato nem começou e o governo Dilma Rousseff já escreve mais um capítulo de violência contra os povos indígenas, desta vez no rio Tapajós, na Amazônia. Depois de impor Belo Monte, que já considera fato consumado, o governo concentra seus esforços em esmagar toda a resistência contra as hidrelétricas de São Luiz do Tapajós e Jatobá, no município de Itaituba, no oeste do Pará. E, como já fez em Belo Monte, atropelando também a Constituição e qualquer princípio de respeito aos direitos e à dignidade humana. Um vídeo gravado pelos Munduruku, etnia que vive na área afetada pelas usinas, mostra a então presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Maria Augusta Assirati, afirmando a lideranças indígenas, durante uma reunião no mês de setembro, que o relatório da demarcação da sua terra ancestral não tinha sido publicado ainda porque estava no caminho das barragens. “Eu tô em débito com vocês, sim, vocês têm toda razão, mas eu acredito, e quero acreditar, porque o dia que eu não acreditar eu não tenho que estar mais aqui falando com vocês”, afirmou Maria Augusta. Nove dias depois, ela deixou a presidência da Funai.

Maurício Torres/Arquivo Pessoal

FOTOS: Maurício Torres/Arquivo Pessoal

A Funai não publicou o relatório que comprova a terra indígena Munduruku Sawré Muybu porque, segundo a Constituição, os povos indígenas só podem ser retirados de sua terra em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do país. E isso só após deliberação do Congresso e garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. Assim, ainda que o governo federal, quando se trata de impor seu projeto de desenvolvimento e o interesse das grandes empreiteiras, não costume demonstrar qualquer prurido antes de rasgar a Constituição, com a terra Sawré Muybu demarcada, ficaria bem mais complicado, porque ela é atingida diretamente por São Luiz do Tapajós. E o escândalo internacional teria proporções muito maiores.

Para evitar riscos e atrasos na sua sanha de barrar o Tapajós com obras megalômanas, o processo de demarcação foi paralisado. No vídeo, Maria Augusta deixa bem claro os motivos e as pressões sofridas pela Funai. Em maio deste ano, o Ministério Público Federal entrou com uma ação exigindo a publicação do relatório. No final de outubro, a Justiça Federal, na vara de Itaituba, deu uma liminar determinando a publicação do documento em 15 dias. Curiosamente, a Funai, órgão que por lei deveria defender os interesses indígenas, entrou com agravo de instrumento, pedindo a suspensão da liminar para não publicar o relatório pronto há mais de um ano. E a Justiça Federal, em Brasília, acatou o pedido, liberando a Funai para continuar sentada em cima do futuro dos Munduruku.

Ameaçados de ter sua terra ancestral alagada e traídos pela Funai, guerreiros Munduruku protagonizam, desde o final de outubro, uma cena impressionante: a autodemarcação do seu território (veja aqui)

 Está em curso mais um capítulo sombrio da história do Brasil. O mais nocivo governo para os povos indígenas e para a Amazônia desde a ditadura militar começa a escrever mais um capítulo vergonhoso do seu legado. E tudo isso acontece, neste exato momento, sem que parte da imprensa brasileira dê qualquer destaque, sem que a maioria da população brasileira pareça se importar. Nesse ritmo, quando os brasileiros acordarem, não só estarão sem água nas torneiras, como não haverá um rio vivo e uma árvore em pé na mais mítica floresta tropical do planeta.

Aqui, a transcrição das falas do vídeo da reunião entre Munduruku, Funai e outros membros do governo federal:

Brasília, 17/09/2014
Reunião da Funai com os Munduruku e a presidente do órgão, Maria Augusta Assirati
Também estavam presentes:
Nilton Tubino, secretário geral da Presidência da República
Celso Knijnik, do Ministério do Planejamento
Márcio Lopes de Freitas Filho, do Ministério da Justiça
(Imagens gravadas por Deusiano Saw Munduruku)

 MARIA AUGUSTA ASSIRATI, PRESIDENTE DA FUNAI:
“Então, gente, aquela vez em que nós conversamos aqui, né, vocês estiveram aqui no final do ano passado, a gente teve uma reunião longa, né? Colocando para vocês que naquele momento o relatório ainda precisava de alguns ajustes finais, para a gente poder concluir, né? Explicamos para vocês quais eram esses pontos ainda, né? E como é que era o andamento do processo aqui dentro, né. Que o grupo, a coordenadora do GTI, os coordenadores do GTI iam concluir a sua parte, mandavam para a coordenadora de identificação e depois isso ia para a diretoria e depois viria para a presidência para se manifestar, publicar o relatório ou, enfim, decidir sobre aquela proposta, né? E a gente combinou com vocês que, falamos para vocês que em abril o relatório estaria pronto, né? Foi essa a informação que naquele momento eu coloquei para vocês, fui eu mesma que disse isso, né? E de fato a gente conseguiu concluir nosso relatório nesse período. Quando foi em abril, o diretor me mandou o processo. O processo tá hoje comigo, tá na minha mesa, lá, pronto para ser deliberado.
Mas quando a gente conseguiu concluir o relatório, existia um conjunto de questões que estavam sendo decididas na região que fizeram com que a gente precisasse discutir o relatório não só no âmbito da Funai e vocês, povo Munduruku, mas outros órgãos do governo passaram a também discutir essa proposta de relatório, discutir a situação fundiária da região. Por quê?Porque vocês sabem que ali tem uma proposta de se realizar um empreendimento hidrelétrico, né, uma hidrelétrica ali naquela região, que vai contar com uma barragem pra geração de energia e essa barragem tá muito próxima da terra de vocês. E quando a gente concluiu o relatório surgiram dúvidas se essa área da barragem, se esse lago que essa barragem da hidrelétrica vai formar, vai ter uma interferência na terra indígena de vocês. Na área de vocês, na vida de vocês, né? Então começou-se a estudar isso. A reunir elementos para que se tivesse uma definição realmente concreta de que essa barragem, esse lago não vai causar um prejuízo pra vida do povo que tá vivendo ali, pra essa terra indígena.

(corte)

O empreendimento tem uma importância, porque vai gerar energia para um conjunto grande de pessoas no país, né, enfim, e também, sobretudo do ponto de vista da nossa atuação da Funai, né, que é o nosso papel, do órgão indigenista, né, a gente acha fundamental que o território de vocês também esteja garantido, né? Principalmente, né, porque, como vocês colocaram, aquela região já tá tendo pressão madeireira, garimpeira, de uma série de outros elementos que tão em volta da onde vocês moram, que o empreendimento não pode ser mais um fator de dificuldade para a vida de vocês. Então a gente tem que garantir o território, a gente tem que garantir que vocês tenham proteção suficiente para viver tranquilos, né? Pra desenvolver o modo de vida tradicional de vocês naquela região, né, que é uma região que historicamente, né, vocês vivem. O povo Munduruku ele é originalmente daquela região, né. Isso a gente sabe, isso nosso estudo, ele comprova, então trata-se de uma ocupação tradicional. Então, e a gente tem buscado defender essa posição, de que é possível ter essa compatibilização. E por isso que a gente não conseguiu até hoje publicar. Por quê? Porque a gente aguarda esses elementos técnicos, para poder realizar essa compatibilização: permitir que o setor elétrico faça seu empreendimento, a barragem, e com isso beneficie um número grande de pessoas no país, e permitir que a terra de vocês seja reconhecida, e que vocês tenham o direito de vocês assegurado, e que a gente cumpra o nosso dever, como Estado brasileiro e como Fundação Nacional do Índio, que pertence ao governo, que pertence a um órgão de Estado, é um órgão público de Estado. Por isso a gente ainda não conseguiu publicar. Essa notícia ela é ruim ainda. Ela é uma notícia que não é ainda positiva, não é a que a gente gostaria de dar.”

(corte)

ROSENINHO SAW, PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PAHYHYP
“Se você tá na Funai, você tem de defender o interesse nosso lá, não é? Então, o povo lá tá sofrendo. O povo lá tá sofrendo. Porque a gente veio aqui foi pra tratar de terra, tratar só da demarcação, né, porque a prioridade que foi fechada aqui, naquela reunião passada, foi a aldeia de lá, que é a Sawré Muybu, né, mas você disse que ia ver essa possibilidade, prometeu, mas não saiu, né? Agora, então, o meu pensamento: se você não quer trabalhar na Funai, eu entregaria o cargo. Você não tem interesse de defender a nossa causa.

(corte)

A prioridade é gerar energia para o Brasil, né? (…) Barragem acaba com todo mundo, porque o que é que vem depois da barragem? Mineração. Para mim, isso não é projeto pro Brasil, não. Porque até mesmo nós não somos brasileiros, não. O Brasil foi invadido. Nós morava aqui há muito tempo. Pra que tanta energia? Eu sei que não vai beneficiar o Brasil, não. Ninguém. Então essa é a revolta das lideranças. Por isso que foi priorizada a questão da demarcação.”

(corte)

DEPOIMENTO DE UMA INDÍGENA
“Porque nós, quando fala que vai fazer, a gente nunca esquece, né, a gente fica esperando, porque a pessoa se compromete de fazer as coisas. A gente ficou aguardando até agora, até agora ainda não saiu esse relatório. Não foi publicado. Então, por isso que a gente tá aqui. Como a gente fala, aqui, não é fácil a gente chegar aqui, é um sofrimento grande. Nós mesmos saímos de Jacareacanga passando fome até aqui em Brasília. Hoje que o pessoal se coisaram para tratar de comer. A gente tá aqui porque a gente tem que defender. A gente tá aqui pedindo não é as terras dos outros. A gente tá aqui defendendo o que é da gente, né? Não é da outra pessoa. Não é dos pariwat (não indígena ou branco). É o que é nosso, onde vivemos, onde nossos antepassados deixaram para nós.”

(corte)

DEPOIMENTO DE OUTRO INDÍGENA (camisa xadrez)
“Onde que a barragem vai interferir na demarcação da terra indígena, né? A barragem vai impactar, assim, de qualquer jeito, sabe? Porque se não quisesse que o povo indígena sofresse, eu acho que o governo não ia fazer empreendimento no Tapajós, não.”

(corte)

DEPOIMENTO DE OUTRO INDÍGENA (em pé, no vídeo)
“Dá para ver que o governo, (tanto) quanto a Funai, não tem nenhum compromisso, nenhum, com os indígenas, em trabalhar com os indígenas. Eu não sei se esse relatório tá andando em passo lento, igual passo de jabuti, ou então estão aproveitando que corra mais um empreendimento … (…). A gente fica até assim, até, muito, com raiva, né? Que você falou uma coisa e depois não cumpriu, né. Então a senhora não está levando as coisas a sério. Está fazendo tipo um como o pessoal fala, desculpa a expressão, mas, como um papel de moleque, né?”

(corte)

MARIA AUGUSTA
“Eu acho que essa terra indígena já deveria estar demarcada, já deveria ter sido o relatório publicado, mas que isso não depende da vontade de uma só pessoa, de um só órgão. Isso é um conjunto de fatores que define essas questões, que não sou só eu que posso ditar quais são os interesses prioritários do governo. Eu pertenço e represento um órgão do governo. Mas não a sua totalidade. Eu acho que vocês estão certos de me cobrar. Eu acho que vocês têm toda razão quando dizem que eu estou em débito com vocês. Eu estou e queria aqui reconhecer isso. Mas também queria que vocês soubessem que não é porque eu não tenho compromisso com os povos indígenas, mas é porque eu tenho um limite para minha atuação dentro do governo.

(corte)

O empreendimento, vocês têm razão, que teve um avanço, algumas coisas aconteceram, chegou a um ponto de terem algumas conclusões em relação ao empreendimento, mas ele também ainda não se concretizou.

(corte)

O que que é o correto? É justamente isso que você tá colocando, que se cumpra a Constituição, porque eu, no meu papel de governo, eu não defino, e não posso definir, nem sou chamada para a discussão, se a energia vai ser hidrelétrica, solar, eólica, onde vai ter hidrelétrica. Isso a gente não entra nessa questão, mas quando se trata de falar da questão da ocupação tradicional, dos direitos de vocês, da relação com os povos indígenas, aí sim a minha obrigação é dizer qual é a situação que vocês estão vivendo.

(corte)

Eu tô em débito com vocês, sim, vocês têm toda razão, mas eu acredito, e quero acreditar, porque o dia que eu não acreditar eu não tenho que estar mais aqui falando com vocês. Eu acredito ainda que existe um caminho, uma possibilidade, de a gente conseguir viabilizar a garantia territorial para vocês lá. Não só em Sawré Muybu, mas nas outras áreas que são o grande território Munduruku, que ocupam e habitam há muitos e muitos e muitos anos toda a bacia do rio Tapajós. É uma tarefa muito difícil, minha gente.É uma tarefa muito difícil, porque o governo, também, e isso vocês sabem, ele é composto por um conjunto de órgãos que às vezes têm interesses diferentes entre si e a gente precisa estar o tempo inteiro fazendo esse diálogo, levando e apresentando as demandas de vocês, as necessidades de vocês. Esse é o nosso papel.
Essas preocupações, que vocês colocaram aqui, hoje, elas têm sido as preocupações que a gente leva para essas discussões, onde têm esse conjunto grande de órgãos. Mas não somos nós que definimos. Isso é uma estratégia de governo. O nosso papel é defender os direitos de vocês, mas têm órgãos dentro do governo que têm como prioridade, sim, construir a hidrelétrica.

(corte)

Nós erramos, né, eu acho que a gente realmente deveria ter procurado esse contato antes, lá atrás, em abril, para dizer quais foram os problemas que surgiram. Não fizemos isso. Então eu estou aqui pedindo desculpas para vocês, né, reconhecendo que isso foi uma falha nossa, da Funai sede, aqui, sobretudo.
Então vamos marcar final de outubro, gente, para a gente dar essa avaliação para vocês, do que é que a gente acha que vai ser esse impacto, porque isso tá diretamente relacionado à questão da demarcação. Embora a gente não atrele às coisas, na prática é difícil para nós, separar. A gente daqui um mês, aqui no final de outubro, voltaria a conversar com essa análise preliminar.”

Maria Augusta Assirati pediu demissão no dia 26 de setembro de 2014, nove dias depois da reunião, sem assinar o relatório da Terra Indígena Sawré Muybu.

Assista o vídeo aqui

Email elianebrum.coluna@gmail.com

Análise de dos botocudos que vivem no Brasil


Cientistas descobrem que índios brasileiros tinham ascendência polinésia

Análise de dos botocudos que vivem no Brasil antes do desembarque dos europeus revela que 100% dos genes deles eram de habitantes das ilhas no Oceano Pacífico

Isabela de Oliveira

Ao contrário de outros animais, os humanos conseguiram ocupar quase todos os espaços terrestres em que a vida é viável. Como os ancestrais executaram isso, entretanto, é um tema que continua desafiando os estudiosos. Agora, uma equipe internacional de pesquisadores, entre eles brasileiros, achou indícios de uma parte intrigante desse capítulo: índios botocudos, distribuídos na Bahia, no Espírito Santo e em Minas Gerais, têm traços genéticos idênticos aos dos polinésios, que estão do outro lado do mundo, no Pacífico.

Terena 8

A descoberta traz um novo cenário à história da América pré-colombiana. Indica que Cristóvão Colombo pode não ter sido o grande descobridor do Novo Mundo, mas viajantes polinésios. Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores analisaram crânios de dois índios botocudos — chamados Bot15 e Bot17 —, guardados no Museu Nacional do Rio de Janeiro desde o século 19. A análise genômica dos indivíduos que viveram em Minas Gerais mostrou que eles não tinham nenhum gene de outros nativos da América.

Realidade!

A pesquisa, cujos resultados foram publicados na revista Current Biology, é a continuação de uma investigação de 2013 conduzida pelo mesmo grupo. “O estudo anterior foi limitado a uma região muito pequena do genoma e, portanto, não podia excluir que os indivíduos tinham tanto a ascendência nativa americana quanto a polinésia. O novo trabalho examina todo o genoma desses indivíduos e, com isso, descobrimos que os dois têm 100% de ascendência polinésia”, conta Mark Stoneking, coautor e pesquisador do Departamento de Antropologia Evolutiva do Instituto Max Planck, na Alemanha.

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Do Museu de História Natural da Dinamarca, Eske Willerslev, um dos autores principais, explica que a primeira fase do estudo mostrou que os índios tinham DNA mitocondrial — herdado da linhagem materna — polinésio. O segundo trabalho constatou que o genoma nuclear — aquele que codifica a maior parte do genoma — também tinha origem no pacífico. “Ou seja, o pai e a mãe desses indivíduos eram realmente polinésios, além dos ancestrais”, completa.

Por que o racismo contra indígenas é o maior de todos no Brasil?


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Nós Temos FUTURO

Por que o racismo contra indígenas é o maior de todos no Brasil?

Admito que é uma estratégia que pode não apenas parecer de mau gosto, mas até de certa perversidade, ficar comparando graus de racismo. Pode parecer que se está desprezando o sofrimento de quem quer que o sofra em algum grau, e tudo isso já seria por si só eticamente inadmissível. No entanto, não é essa minha intenção. Ela é simplesmente a de chamar atenção para uma questão relevante e para um processo em curso que muitas vezes não encontra a mesma repercussão exatamente porque se está diante de um fenômeno extremado. É o caso do racismo contra os indígenas no Brasil.

Tradicionalmente tidos como “primitivos” e por muitos dados por “extintos”, os índios hoje constituem uma parte relevante da população brasileira inclusive populacionalmente, uma vez que vêm tendo alguns focos de recuperação após a Constituição de 1988 e o início das demarcações de terras diante de um massacre de 500 anos. A atribuição de “primitivos” hoje não faz qualquer sentido na medida em que são nossos contemporâneos, a menos que nos consideremos tão superiores aos demais povos que toda aquela cultura que não é a nossa é algo que está “atrás”, “chegando” na nossa, mesmo que ela se passe ao mesmo tempo, tomando diferença por inferioridade. Afora esse preconceito etnocêntrico, Eduardo Viveiros de Castro tem demonstrado ao lado de outros importantes antropólogos que a cultura indígena é também um referencial que pode ser uma linha de fuga para o colapso civilizacional que o Ocidente vive em termos ecológicos, à medida que se contrapõe à nossa “necessidade extensiva” como uma “suficiência intensiva”. A vida baseada no baixo impacto ambiental dos índios contrapõe-se ao nosso impulso destrutivo que na maioria das vezes, embora materialmente insustentável, justifica-se com base em padrões messiânicos que, mesmo secularizados, continuam alimentando o imaginário político do Ocidente, sobretudo na ideia de “senhorio” da natureza, como se a Terra fosse nossa propriedade numa espécie de “destino comum” a que chegaríamos no fim da História. A forma ameríndia de pensar é completamente diversa, mas não cabe a mim, um mero iniciante nessas questões, desenvolvê-la. Queria apenas afastar qualquer tipo de justificação racional para a forma racista como o índio é visto, mostrando que se trata não de racionalidade, mas de racionalização (no sentido freudiano).

Terena 8

Por que o racismo contra os índios é o mais intenso hoje em dia? Simples: porque os setores políticos que se dirigem contra a injustiça ainda estão majoritariamente abastecidos pelo eurocentrismo e, como tais, pela teleologia do progresso. Assim, de alguma forma existe um destino comum (pode colocar o “comunismo” aí) que nos uniria e libertaria do capitalismo, proporcionando a emergência de novos regimes sociais e econômicos. Que os índios tenham que ser libertados do capitalismo, não há dúvida. Eles sentem esses efeitos por todos os lados, seja pelo colonialismo do agronegócio e da pecuária, seja por verem cada vez mais seu espaço social de convivência reduzido às franjas urbanas, identificando-se com os pobres das cidades e tendo que garantir sua subsistência com artesanato e assistência social do Estado. No entanto, sem dúvida eles não se identificam com a figura do trabalhador explorado que percorre o imaginário da esquerda tradicional. A questão é que esse imaginário é totalizante e autoritário: ele não aceita dissidência e pluralismo, trabalha a partir de oposições simples e reduz toda figura que transborda a um reflexo pálido de um dos polos. Isso significa que, provando sua brutal ignorância antropológica, boa parte da esquerda, e em especial a que hoje governa o país, considera que o índio é alguém que precisa ser “incluído”, ser transformado em trabalhador e se unir à luta dos demais contra o capitalismo. Em outros termos, essa esquerda subscreve o etnocídio que significaria erradicar as culturas indígenas e as desfigura para que caibam no seu esquadro reduzido que obviamente é um reflexo torto do mundo europeu. Todas as potencialidades de uma tradução cultural que poderia constituir um Brasil plural e inclusive referencial para um novo modelo sócio-econômico ficam soterradas por um projeto monolítico com uma única missão: progredir, produzir, consumir. Aqueles que estão fora desse espaço de disputa, embora sintam nas margens os efeitos perversos, simplesmente não existem para essas representações.

 



Cacique pensando

Não existem. Tenho vários amigos governistas e toda vez que lanço o argumento do que o Governo Federal vem fazendo em torno de ofensiva anti-indígena a conversa simplesmente estanca. Ou desvia-se. Perguntado a um importante intelectual brasileiro mais ou menos alinhado ao Governo sobre a dissidência indígena, ele respondeu recentemente que ela “talvez” exista. Nas linhas escritas pelos defensores do Governo Dilma os índios simplesmente não aparecem, a questão não existe. “Índios, pena que já morreram todos, não?” Aliás, a própria questão do reconhecimento do índio é usada como contra-argumento: “índio? Mas usa celular!”. Como se as culturas não se transformassem, como se elas, por se manterem, significassem oásis de pureza, e como se uma das coisas que mais chamasse atenção nas culturas ameríndias fosse exatamente sua vocação antropofágica, seu olhar para o outro que fratura do eu. De qualquer forma o índio sempre perde: se veste calça jeans, não é o índio; se não veste, é primitivo.

As duas situações levam ao mesmo raciocínio: acabar com eles.11

 

Assim, enquanto os movimentos negro, feminista e LGBT, por exemplo, conseguiram capitalizar suas demandas e transformar-se em força política de peso, inserindo suas demandas no quadro da política, os índios são objeto de uma indiferença atroz (ressalvadas algumas mobilizações importantes que vem em crescente, mas recebem o silêncio institucional como resposta). A indiferença da invisibilidade, da não-questão, da falta de importância. E nesses termos o discurso da esquerda é exatamente igual ao da direita, que ao fim e ao cabo deseja mesmo é por fim de vez nos índios (“por que demoram tanto!? Esses latifundiários de terra!”). É quase como dissesse: “Não tem como resolver e falta tão pouco para que eles acabem… que terminem logo!”. Enquanto a esquerda simplesmente ignora a questão, tratando como um problema menor diante da exploração do trabalhador pelo sistema capitalista ou da conquista da igualdade social, ela repete, consciente ou inconscientemente, o projeto da direita, que é erradicar os índios para que os verdadeiros latifundiários possam avançar também sobre essas terras e no final transformar todo o verde em verdinhas. Isso me traz de volta à questão do por que, afinal, o racismo contra os índios é o maior? A resposta é: porque ele é o único que pode ser explicitado como racismo na esfera pública. Os negros nos anos 50 e 60 tinham que conviver com declarações racistas de políticos do Sul dos EUA quando militavam pela igualdade de direitos. Hoje, ninguém se atreveria a fazer declarações racistas senão como um ato falho ou em forma de piada (último esconderijo do racismo). Ninguém pode chegar na esfera pública e declarar que é racista ou que negros são isso ou aquilo. Com os índios, pode. Uma pessoa pode, como um candidato a senador do Rio Grande do Sul recentemente fez, dizer que “quantos índios no Brasil deixaram de ser índios e se tornaram profissionais respeitados?” Troque índio por negro e se vê o que acontece. Mas não só ele, que é um candidato imediatamente identificado com o conservadorismo. Também tem gente de esquerda (ou de ex-querda, dizem as más línguas) afirmando que a cultura indígena vai terminar mesmo, e o que se pode fazer é incluí-lo e transformá-lo no pobre trabalhador. A ideologia do progresso está embutida nesse pensamento. Deveríamos relacionar sem pudores essa estratégia à “cura gay”: o que se quer é que o índio não seja mais índio porque não se quer mais diferença. “Incluímos desde que você não seja mais índio”. Ou: “vamos te curar do primitivismo”. A atrocidade disso é patente.

Por isso, a diferença do racismo com os índios em relação a outras modalidades hoje em dia é essa: os índios são o único grupo social a quem se pode dirigir na esfera pública propondo o extermínio da sua condição especial. Talvez não o único, mas o mais atacado, isso não importa: a questão aqui não é de quantidades, mas de um modelo insuportável de racismo que sobrevive e justifica a ofensiva anti-indígena mais intensa desde na época da Ditadura Militar que vivemos hoje em dia.